terça-feira, 29 de abril de 2014

EQUÍVOCOS E PROCESSOS MAL INSTRUÍDOS DEVOLVEM BANDIDOS ÀS RUAS



É crucial aperfeiçoar critérios da progressão de pena. Equívocos nas Varas de Execução ou processos mal instruídos por inquéritos falhos contribuem para devolver às ruas criminosos de reconhecida alta periculosidade


EDITORIAL
O GLOBO 29/04/14 - 0h00



Por trás dos distúrbios na semana passada em Copacabana, em sequência à morte do dançarino DG, estava o traficante Adauto do Nascimento Gonçalves, conhecido como Pitbull, chefão do tráfico no Pavão-Pavãozinho. Bandidos ligados ao crime organizado, segundo a polícia, são uma das fontes que incitam ataques a UPPs e, em última instância, os recentes episódios que, pela violência, procuram inviabilizar o programa de pacificação do governo do estado. Juntam-se a eles grupos políticos mal-intencionados. As autoridades de segurança precisam se debruçar sobre estes vieses presentes nos tumultos. Mas a presença do traficante Pitbull nos episódios de Copacabana reacende outra discussão, igualmente grave e da mesma forma a reclamar urgente intervenção do poder público — a facilidade e a frequência com que bandidos de alta periculosidade deixam a prisão beneficiados pelo instituto da progressão de pena. O traficante do Pavão-Pavãozinho está foragido do sistema penitenciário desde julho do ano passado, quando entrou no programa de visita periódica ao lar, e não mais voltou para a prisão, é claro.

A progressão de pena é um dispositivo legal, previsto no Código Penal, a rigor um instituto criado com o objetivo de contribuir para o pressuposto correcional do sistema penitenciário. Pelo CP, o réu condenado tem o direito a mudar gradativamente de um regime punitivo mais severo para outro, menos coercitivo — obedecidos necessariamente os requisitos legais. Ou seja, a progressão de pena, que abrevia o tempo de cumprimento de uma sentença, não é um mal em si. Mas, por falhas na execução, o que deveria ser um instrumento de reintegração de presos à sociedade acaba por se transformar num mecanismo que devolve às ruas, sem comprovada regeneração, criminosos como Pitbull e tantos outros que já aproveitaram as brechas na legislação para voltar a aterrorizar a sociedade.

A boa intenção vira um pernicioso instrumento na medida em que, como mostra a extensa crônica de bandidos beneficiados por regimes especiais que reincidem em atos criminosos, a progressão é concedida por equívoco nas Varas de Execução Penal ou mesmo devido a inquéritos incompletos, que por sua vez resultam em processos mal instruídos. Essa sucessão de ações, mal intencionadas ou não, abre as portas para chicanas jurídicas que acabam por fazer a legislação beneficiar indistintamente o preso de bom comportamento e aquele que, contra o espírito do próprio regime, ainda representa ameaça à segurança pública. Quaisquer que sejam as razões que contribuem para deturpar a progressão, cabe ao poder público — Executivo, Judiciário e Legislativo — discutir a fundo a legislação, identificar suas falhas e aperfeiçoá-la. Condenados com regeneração inquestionável não devem pagar pelos equívocos da execução penal, mas também é crucial que o sistema penitenciário preserve a segurança da sociedade, mantendo encarcerados os bandidos perigosos. Esta tarefa é urgente.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

POR UM SISTEMA LEGAL ANTICORRUPÇÃO



O Estado de S.Paulo 23 de abril de 2014 | 2h 07


Marco Vinicio Petrelluzzi e Rubens Naman Rizek Jr.*



O advento da Lei n.º 12.846/13, também chamada de Lei Anticorrupção ou Lei da Empresa Limpa, trouxe a impressão de que o Brasil iria se juntar ao seleto grupo de países que dispõem de refinados sistemas legais de combate à corrupção, como é o caso dos Estados Unidos da América e de vários membros da União Europeia. Afinal, a edição dessa nova lei decorreu de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, particularmente os constantes da Convenção da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, que foi firmada pelo Brasil em dezembro de 1997, ratificada em novembro de 2000 e impõe a adoção pelos países signatários de institutos e mecanismos legais capazes de minimizar a impunidade de empresas que participem de ações ilícitas nas relações com a administração pública, nacional e estrangeira.

É verdade que com a edição da chamada Lei Anticorrupção o Brasil avançou muito nessa direção, principalmente tendo em vista a possibilidade de responsabilização objetiva das pessoas jurídicas por atos lesivos à administração estatal. Em razão da adoção da responsabilização objetiva, não será mais necessário comprovar a culpa da empresa ou de sua diretoria, podendo ela ser responsabilizada e punida caso qualquer pessoa legitimada a agir em seu nome participe, mesmo sem o beneplácito da direção dessa pessoa jurídica, de atos característicos de corrupção ou a eles conexos. Todavia, apesar desse inegável avanço, numa análise mais detida observamos que outros instrumentos modernos e interessantes, também trazidos pela nova legislação, podem revelar-se pouco efetivos, sobretudo na prevenção de atos de corrupção e na apuração de condutas desviadas. Isso se dá por causa das deficiências sistêmicas do ordenamento jurídico nacional, em particular quando se refere ao assunto corrupção.

As legislações mais efetivas em relação ao combate à corrupção criaram, para essa finalidade, sistemas legais planejados e integrados e, com isso, corrigiram sobreposições, redundâncias, inseguranças e imprecisões. Um sistema assim concebido e organizado, além de trazer maior segurança jurídica a todos os que lidam com o tema corrupção, e proporcionar às instituições estatais que combatem a corrupção instrumentos específicos e mais eficazes para a repressão e a punição de condutas desviantes, acaba também por incentivar as pessoas e, sobretudo, as empresas a terem atitude proativa no combate à corrupção, principalmente com a adoção de programas sérios de compliance, desenvolvimento de controles internos, transparência de posturas, técnicas de governança e códigos de ética empresarial.

No Brasil, entretanto, não parece claro que a edição da Lei n.º 12.846/13 será eficaz no sentido de incentivar realmente essas práticas ou mesmo para induzir as empresas que se tenham beneficiado de condutas inadequadas na direção da celebração de acordos de leniência, que são o instituto equivalente à delação premiada para pessoas jurídicas. A razão do nosso ceticismo decorre da existência de grande variedade de leis em vigor no nosso país que - de forma simultânea, autônoma e dispersa, sem uma lógica integradora própria dos verdadeiros sistemas legais - trazem sanções a condutas que afrontam a moralidade pública. Essa sobreposição de várias leis gera incongruências na malha legal atinente à questão dos atos de corrupção no Brasil.

Veja-se que, no País, é possível que uma única conduta praticada por determinada pessoa, natural ou jurídica, deflagre ações legais simultâneas e independentes, com base na Lei Anticorrupção, na Lei de Improbidade Administrativa, por infração da ordem econômica, pela via da ação civil pública ou de ação popular. Isso sem contar as disposições de caráter penal que podem vir a alcançar os diretores e prepostos das pessoas jurídicas. Diante desse quadro, o compliance ou o acordo de leniência não terão muito significado, eis que esses outros diplomas legais, que não foram adaptados, não contemplam tais possibilidades. Dessa forma, será muito pouco atrativo para uma pessoa jurídica socorrer-se desses novos institutos na blindagem de sua marca ou mesmo na proteção de sua saúde financeira.

É importante observar também que, mesmo com essas sobreposições e a ausência de sistematização, as normas brasileiras anticorrupção, em particular a Lei n.º 12.846/13, estão em pleno vigor e podem ser aplicadas, mesmo que ainda não tenha sido efetivada a regulamentação na esfera federal. Note-se que, ao contrário do governo federal, o Estado de São Paulo já regulamentou a Lei Anticorrupção com a edição do Decreto Estadual n.º 60.106/14, publicado logo após à vigência da nova lei. Isso torna viável a instauração de processos administrativos e a aplicação das sanções, pela Corregedoria-Geral da Administração, ou mesmo pelos secretários de Estado, ou pelas autoridades maiores de outros entes públicos. Mas mesmo em plano federal a lei admite desde logo, pela via judicial, a aplicação das sanções nela previstas por iniciativa direta do Ministério Público, o que, em nosso entendimento, prescinde de qualquer regulamentação.

Assim, temos a convicção de que esse novo e importante diploma legal ainda trará muita discussão em sua aplicação e é mais um passo no ainda incompleto trabalho de construir no Brasil um verdadeiro sistema legal anticorrupção, o que exige esforço e atenção dos operadores do Direito, dos políticos e das empresas que negociam com o poder público.


*Marco Vinicio Petrelluzzi e Rubens Naman Rizek Jr. são, respectivamente, procurador de justiça do Ministério Público de São Paulo na área de improbidade administrativa e foi secretário de segurança pública do Estado; secretário de Estado do Meio Ambiente e foi presidente da Corregedoria-Geral da Administração de São Paulo.

 

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Como todas as leis no Brasil. Elas são elaboradas e sancionadas sem que haja estrutura para executar e aplicar estas leis. O resultado é óbvio.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

O LADRÃO DE GALINHAS



JORNAL DO COMERCIO 17/04/2014


Celso Antonio Soster



Parece piada mas não é. Causa revolta, indignação, estupefação, e me faltam adjetivos, para qualificar o rumoroso caso do homem que furtou um galo e uma galinha, no município de Rochedo de Minas (MG), avaliados em expressivos R$ 40,00. Esse crime hediondo foi parar, pasmem, no STF. A tramitação do feito foi a partir da denúncia oferecida e que foi aceita pelo juiz Julio Cesar Silveira de Castro da comarca de São João Nepomuceno (MG). Quando chegou ao TJMG, a defensora pública pediu, através de um habeas corpus, o trancamento da ação penal, com fundamento no princípio da insignificância. Pedido indeferido. Pedido no mesmo sentido feito ao STJ foi, mais uma vez, indeferido. Aportou recentemente no STF e o processo foi parar nas mãos do ministro Luiz Fux que, por incrível que possa parecer, decidiu, em um juridiquês de quatro laudas, que o processo deveria ser julgado mais para frente, em caráter definitivo.

Quero expressar aqui, minha indignação não apenas como operador do Direito, que vive as mazelas dos atrasos nos trâmites processuais em uma Justiça abarrotada de processos e vendo eminentes figuras, com altos salários, ocupadas com questões insignificantes, mas também como cidadão que paga impostos altíssimos para custear a máquina do Judiciário e tem o desprazer, para dizer o mínimo, de ver seu dinheiro ser gasto de forma tão irracional e perdulária.

Por outro lado, questões importantíssimas como o julgamento da inconstitucionalidade de parcelamento dos precatórios, a constitucionalidade do programa Mais Médicos, quatro recursos questionando as perdas na poupança decorrentes dos planos econômicos de 1980 e 1990 estão engavetados aguardando julgamento. O que esperar de um País que sequer sabe escolher prioridades, julgando ladrões de galinha em detrimento de questões de relevante interesse nacional como os citados antes?

Advogado

terça-feira, 8 de abril de 2014

SEGURANÇA PÚBLICA E RESPONSABILIDADE DO JUDICIÁRIO

Revista Consultor Jurídico, 5 de abril de 2014 - OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL


Por Gilmar Ferreira Mendes




Dois projetos de lei em tramitação no Congresso americano receberam destaque no editorial do The New York Times publicado em março passado[1].

Um deles, o Smarter Sentencing Act, prevê a flexibilização do modelo hoje adotado para crimes não violentos relacionados a drogas, para os quais se exige aplicação de penas mínimas, atualmente fixadas em 5, 10 e 20 anos. Pelo novo regime proposto, que permitiria, em certos casos, a fixação de penas abaixo do mínimo obrigatório, milhares de presos condenados por uso de drogas – especialmente o crack – estariam livres da prisão.

Em complementação, dispõe o projeto Recidivism Reduction and Public Safety Act que presos condenados por crimes de baixo potencial ofensivo poderiam reduzir suas penas por meio de créditos pela participação em programas educacionais, de capacitação profissional e de prevenção ao uso de drogas.

Destaca o jornal que esses dois projetos, caso aprovados, por certo darão significativo passo rumo à superação de décadas de história americana marcadas pelo encarceramento em massa, um dos temas mais controversos da política dos Estados Unidos.

Fato que desperta curiosidade nessas duas propostas é que elas estão sendo aceitas inclusive pela ala conservadora do Congresso. A explicação desse raro consenso sobre o tema reside, de acordo com a publicação, no impacto que o sistema prisional representa no orçamento americano: cerca de US$ 7 bilhões por ano, um quarto de todo o orçamento do Departamento de Justiça.

Justamente por esse motivo, diversos estados americanos já procuram adotar medidas semelhantes às ora discutidas em âmbito federal. No Texas, por exemplo, estado que mais encarcera nos Estados Unidos, os legisladores conceberam alternativas ao encarceramento, como tribunais especiais para julgar usuários de drogas e programas eficientes de combate à reincidência. Essa nova política resultou em expressiva diminuição da população carcerária, acarretando, até, o impressionante fechamento de três prisões estaduais, além da redução dos índices de criminalidade.

A conclusão do editorial é óbvia: a experiência que vem sendo adotada em alguns estados mostra que essas medidas apresentam impacto positivo não apenas no tocante à redução da reincidência e na diminuição do número de encarcerados – com a consequente destinação de presídios a infratores mais violentos –, como também na própria gestão de segurança pública.

Aqui no Brasil, também estamos a discutir possíveis ações para superação do quadro de barbárie em que se encontra o nosso sistema carcerário. E é exatamente na necessidade de tratarmos dessa questão de forma indissociável do macrossistema da segurança pública que há tempo venho insistindo.

Em recentes entrevistas a esta ConJur[2] e à Folha de S.Paulo[3], destaquei que a deficiência do sistema carcerário brasileiro deve ser abordada a partir da premissa de que esse problema é de responsabilidade de todos. Um eficaz plano de melhorias deve englobar o trabalho harmônico dos diversos entes estatais, além de ser tratado em conjunto com iniciativas voltadas à prevenção da reincidência, à efetiva atuação dos magistrados, à campanha de prevenção às drogas, entre tantas outras.

Em audiência pública sobre o sistema carcerário que promovemos recentemente no Supremo Tribunal Federal[4], foram relatadas diversas situações que deixaram evidente que há algo verdadeiramente absurdo na tragédia cotidiana do nosso sistema prisional. Ao lado da falta de vagas, foi constatado também que o controle de muitos presídios por facções criminosas é fato preocupante, que em muito tem contribuído para o retorno dos presos à criminalidade quando egressos do sistema.

Além disso, em face da escassez de estabelecimentos prisionais apropriados aos regimes aberto e semiaberto, é comum o cumprimento de penas integralmente em regime fechado ou em prisão domiciliar, sem observância da progressão de regimes prevista na Lei de Execução Penal. Em São Paulo, Estado com a maior população carcerária do país, há aproximadamente seis mil presos cuja progressão para o regime semiaberto já foi deferida pelo juiz, mas que ainda permanecem no regime fechado por falta de vagas no semiaberto[5]. E hoje se sabe que bastariam investimentos da ordem de 400 milhões de reais para se obterem as 24 mil vagas faltantes para o regime semiaberto[6].

Esse quadro alarmante representa, contudo, apenas a ponta do iceberg do entrelaçamento de questões muito mais complexas, mas nem por isso sem solução. São problemas de tal forma imbricados que hoje já não faz mais sentido discuti-los isoladamente. Não obstante tudo isso, o Brasil, ao contrário da situação americana retratada no editorial do The New York Times, já possui legislação e projetos aptos a dar respostas efetivas aos horrores que presenciamos no sistema carcerário nacional.

O sistema prisional é parte importante da segurança pública e assim deve ser tratado.

A segurança pública, por sua vez, tem direta relação com a garantia dos direitos fundamentais: um assegura a efetividade do outro, em um ciclo que se retroalimenta. A concretização e a manutenção das garantias constitucionais dependem da paz social, fundada na real segurança de todos, assegurada, por sua vez, pelo adequado funcionamento das instituições[7].

O balanceamento entre liberdade e segurança sustenta, em última análise, a própria ordem constitucional, de modo que o cidadão não exerça sua liberdade sem limites, mas possa confiar na liberdade que lhe é garantida pelo Estado, assim como na proteção contra o próprio Estado. Nas palavras de Isensee: segurança é obra da liberdade (“Sicherheit ist das Werk der Freiheit”)[8].

Nossa Constituição Federal possui vários dispositivos relacionados à segurança pública, como a previsão de que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (art. 144), a ser exercida por intermédio da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Polícia Ferroviária Federal, das polícias civis e militares e dos corpos de bombeiros militares, a partir de lei que discipline sua organização e funcionamento de maneira a garantir a eficiência de suas atividades (art. 144, §7º).

Cumpre à União legislar privativamente sobre direito penal e processo penal (art. 22, I), sobre requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra (art. 22, III), sobre convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares (art. 22, XXI), sobre competência da polícia federal e das polícias rodoviária e ferroviária federais (art. 22, XXII). Em relação às Forças Armadas, define que “lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas” (art. 142, §1º).

Podemos citar, ainda, as seguintes disposições constitucionais do art. 5º:

“constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” (art. 5º, XLIV); bem como que a “lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem” (art. 5º XLIII).

Além de garantir os direitos fundamentais de forma ampla (art. 5º), a Constituição prevê normas impositivas de deveres de proteção, tais como as que estabelecem que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (art. 5º, LXI).

Todo esse quadro normativo legitima o que aqui se propõe: é preciso uma estratégia global para lidar com a questão da segurança pública. Já passou da hora de insistirmos em tratar desses temas de forma isolada. Um sistema integrado de segurança pública, algo como um “SUS de segurança pública”, poderia ser pensado, por exemplo, em termos de federalismo cooperativo, devendo a União assumir seu papel de organização e coordenação de ações gerais.

Não é possível, portanto, que o assunto “segurança pública” seja tratado como competência exclusiva dos Estados. União, Estados e Municípios têm atribuições próprias, relevantes e conexas, que devem ser exercidas de forma coordenada e com o indispensável senso de cooperação Cabe especialmente à União, no encaminhamento de soluções sobre essa nova perspectiva, importante papel, em razão do seu vasto leque de responsabilidades em matéria de segurança pública: legisla sobre direto penal, sobre processo penal, sobre execução penal, controla a Polícia Federal e as Forças Armadas.

Além disso, é também inequívoco que é a União que detém, hoje, nesse federalismo assimétrico, a concentração de grande parte dos recursos destinados ao sistema de segurança pública. Com raras exceções, os estados estão em situação de penúria. Todavia – e voltamos à ideia principal deste texto –, o que precisamos é de organização e de procedimento. É incompreensível que, diante da notória falta de vagas no sistema prisional, os recursos do Funpen ainda sejam passíveis de contingenciamentos, como infelizmente tem ocorrido. Dados recentes indicam que esse Fundo dispõe de cerca de R$ 1,065 bilhão e recebe, em média, R$ 300 milhões por ano. Só no ano de 2013, por exemplo, o Funpen foi autorizado a investir R$ 384,2 milhões, mas apenas 10,6% desse valor foram efetivamente empregados[9].

Vê-se, pois, que segurança pública, além de um inafastável direito de todos, é também dever da União, dos Estados e dos Municípios. Para o cumprimento dessa obrigação, é preciso que os Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo repensem suas responsabilidades e unam-se, de forma coordenada, em uma ampla estratégia de segurança pública.

Nesse sentido, seria interessante pensar, por exemplo, do ponto vista do Judiciário, em soluções criativas para o enfrentamento do caos reinante no sistema prisional por meio de medidas como o estabelecimento de prazos e indicação de ações concretas para que omissões estatais sejam solucionadas, sob a coordenação do próprio Judiciário.

No biênio em que estivemos à frente da Presidência do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça (2008-2010), instituímos projetos que hoje são referência no combate a essas notórias deficiências. Um deles, o projeto Mutirão Carcerário, em execução desde agosto de 2008, resultou em um amplo mapeamento do sistema prisional, com a recuperação da dignidade de pessoas injustamente esquecidas e ignoradas pela sociedade.

A partir de inspeções realizadas em diversos presídios brasileiros, o Conselho Nacional de Justiça constatou que a contrariedade à lei – especialmente à Constituição – escancara-se diante das péssimas condições em que são cumpridas as penas no país, em situações que vão desde instalações inadequadas até maus-tratos, agressões sexuais, promiscuidade, corrupção e inúmeros abusos de autoridade. A constatação, nesses mutirões, de casos como o de pessoas ainda presas com penas já cumpridas ou sem o gozo de benefícios a que já fariam jus e até – pasmem! – em prisão provisória há 14 anos – faz ruir o velho costume de atribuir-se a culpa pelas mazelas do sistema prisional exclusivamente ao Poder Executivo[10].

Como mais uma forma de combate ao quadro deflagrado pelos Mutirões Carcerários, importante destacar que, após sanção da Lei 12.106, em dezembro de 2009, foi criado, no CNJ, o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DFM), com a missão de monitorar e fiscalizar os sistemas carcerários do país, além de verificar as medidas socioeducativas aplicadas pelos órgãos responsáveis em cada cidade brasileira.

É patente, todavia, que de pouco valeria qualquer iniciativa com vistas a assegurar os direitos fundamentais dos acusados e dos detentos do sistema prisional brasileiro, caso não fossem igualmente criadas formas de reinserção social dos seus egressos. Para tanto, o CNJ instituiu oPrograma Começar de Novo[11], que, mediante campanhas institucionais, objetiva sensibilizar a população para a necessidade de recolocação de ex-presidiários no mercado de trabalho e na sociedade.

Entre as iniciativas nesse sentido destacam-se, v.g., a realização de campanha de mobilização para a criação de uma rede de cidadania em favor da ressocialização; o estabelecimento de parcerias com associações de classe patronais, organizações civis e gestores públicos, para apoiar as ações de reinserção; a integração dos serviços sociais nos Estados para seleção dos beneficiários do projeto; a criação de um banco de oportunidades de trabalho e de educação e capacitação profissional; e o acompanhamento dos indicadores e das metas de reinserção. O CNJ tem contribuído nessas iniciativas de reinserção por meio acordos de cooperação técnica pelos quais se busca ampliar a capacitação profissional de presos. Mencione-se que, com a proximidade da Copa do Mundo de 2014, foi firmado acordo nesse sentido com o Clube dos 13 e com o Comitê Organizador da Copa do Mundo 2014. Programas semelhantes poderiam ser adotados no plano federal e nos planos locais sem grandes dificuldades.

Ainda com essa visão global em busca de melhorias efetivas, outras ações foram desenvolvidas, como o programa Advocacia Voluntária, criado pela Resolução 62, do CNJ, de 10 de fevereiro de 2010. Esse programa visa prestar assistência jurídica gratuita tanto aos presos que não têm condições de pagar um advogado quanto aos seus familiares. Busca-se, desse modo, ampliar os canais de acesso ao Judiciário às pessoas de baixa renda, principalmente em razão do ainda pequeno número de defensores públicos existentes no país. Esse modelo poderia ganhar uma nova veste com a participação de estudantes e recém-formados em programas de estágios obrigatórios coordenados por diversas instituições, inclusive pela OAB. Lográssemos colocar um bacharel em cada delegacia e, certamente, reduziríamos significativamente os casos de abuso que se repetem cotidianamente.

Das iniciativas do Poder Legislativo[12], também válido citar a criação do Sistema Nacional de Informação de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas (SINESP), que coleta e analisa os dados necessários à melhor gestão (Leis 12.681 e 12.714, de 2012). Ao lado desses diplomas legislativos, a Lei 12.403/11, originária de projeto integrante do Pacto Republicano, ampliou significativamente o rol de medidas cautelares à disposição do juiz, alterando o art. 319 do Código de Processo Civil. Trata-se, por certo, de importantíssima medida, como destaquei em artigo publicado também nesta coluna do Observatório da Jurisdição Constitucional[13].

Quanto à medida cautelar, apesar de sua previsão ter sido efetivada em 2011, a cultura das prisões provisórias, lamentavelmente, ainda persiste. Estudos indicam que, até aqui, a Lei 12.403/2011 teve pouco impacto na diminuição da população carcerária brasileira. Isso evidencia que tal procedimento precisa ser efetivamente aplicado pelos próprios magistrados.

Tenho insistido, nesse ponto, que deveríamos pensar na apresentação do preso em flagrante ao juiz em curto prazo, para que o magistrado possa avaliar se há justificativa para a prisão preventiva ou aplicação de uma das medidas alternativas. Apesar de prevista em tratados internacionais, já incorporados ao direito interno, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto de São José, essa medida nunca foi implementada em nosso país[14].

É evidente que não se pode ignorar todas as dificuldades que teríamos na adoção deste modelo, que precisaria ser, de início, um experimento institucional consciente, por certo com relevante impacto nas grandes cidades. Ademais, seria mecanismo de controle de legalidade das prisões em flagrante, prevenindo encarceramentos ilegais, constrangimentos e até tortura no ato de prisão, situações constatadas nos mutirões carcerários realizados pelo CNJ. É claro que, nesse contexto, devemos conferir atenção especial ao funcionamento da justiça criminal, que, como se sabe, tem falhado na prolação de decisão em tempo adequado. É preciso pensar em um programa de modernização da justiça criminal, e aqui se afigura indispensável que o CNJ faça valer a sua liderança, coordenando, inclusive, o aporte de recursos nos sistemas com maiores carências[15].

Em síntese, nenhum programa de redução de criminalidade terá eficácia se não levar em conta as graves deficiências das nossas prisões. Mas a falência crônica do sistema penitenciário também está vinculada a outros temas correlatos como, por exemplo, a reincidência, as alternativas à prisão em casos de delitos de pouca ofensividade e o efetivo funcionamento do Judiciário[16].

Estima-se que um maior protagonismo do Judiciário nas searas referidas justifica-se não apenas em razão de sua competência na matéria, mas também em razão de inequívoca inércia de outros setores a que a ordem jurídica confere atribuições sobre o assunto. Afigura-se fundamental que o CNJ proceda a uma avaliação rigorosa do sistema criminal com iniciativas diversas destinadas a dotar o país de uma justiça moderna também na área criminal.

Medidas assim podem resultar em maior proteção dos direitos e garantias fundamentais não apenas de presos e acusados, mas de toda a sociedade.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).
[1] The New York Times. A Rare Opportunity on Criminal Justice. Publicado em: 15.3.2014 – Disponível em:http://mobile.nytimes.com/2014/03/16/opinion/sunday/a-rare-opportunity-on-criminal-justice.html?hp&rref=opinion&_r=1&referrer . Acesso em 18.3.2014.
[2] http://www.conjur.com.br/2014-fev-02/entrevista-gilmar-mendes-ministro-supremo-tribunal-federal
[3] “Para Gilmar Mendes, já é discutir de maneira franca o sistema carcerário brasileiro”. Entrevista concedida à jornalista Mônica Bergamo, publicada na edição de 8.12.2013 da Folha de S.Paulo, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2013/12/1381683-para-gilmar-mendes-ja-e-hora-de-discutir-de-maneira-franca-o-sistema-carcerario-brasileiro.shtml
[4] Audiência Pública sobre regime prisional, RE 641.320, Rel. Min. Gilmar Mendes.
[5] Audiência Pública sobre regime prisional, RE 641.320, Rel. Min. Gilmar Mendes.
[6] Cf. dados informados na Audiência Pública sobre regime prisional, RE 641.320, Rel. Min. Gilmar Mendes.
[7] Cf. ISENSEE, Josef. Sicherheit als Voraussetzung und als Thema einer freiheitlichen Verfassung.In: Verfassungsvoraussetzungen.Gedächtnisschrift für Winfried Brugger. ANDERHEIDEN, Michael (et alii) Org. Tübingen: Mohr Siebeck, 2013, p. 500.

[9] Cf. dados fornecidos pelo Ministério da Justiça.
[10] Na cidade de Abaetetuba, no Estado do Pará, uma jovem de 16 anos foi mantida presa por mais de 30 dias em uma cela com 20 homens. Acusada de furto, a adolescente afirmou ter sido violentada pelos demais apenados no período em que esteve encarcerada. Segundo a Polícia Civil, no Município não há carceragem feminina, motivo pelo qual a jovem foi indevidamente colocada junto com presidiários do sexo masculino. A juíza que ordenou a prisão da adolescente em uma cela com detentos do sexo masculino foi aposentada compulsoriamente pelo Conselho Nacional de Justiça em abril de 2010.
No Paraná, foi encontrada situação que se repete em diversas outras regiões do país: a inexistência de locais específicos e especializados aos cumpridores de pena que possuem dependência química (usuários de drogas). Normalmente, em muitas localidades, estes são confinados em complexos penais destinados a apenados com doenças mentais, fato também que pode ser considerado agressivo e que em nada contribui com sua melhora. Notícia publicada no site do Conselho Nacional de Justiça: Coordenador de mutirão carcerário recomenda interdição de delegacias no Paraná. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&catid=1%3Anotas&id=9136%3Atj-de-roraima-realiza-concurso-para-contratacao-de-servidores&Itemid=169>.
[11] O Projeto Começar de Novo, que até abril de 2010 já tinha proporcionado mais de 1.700 vagas para cursos de capacitação profissional e trabalho, foi prática premiada pelo Instituto Innovare, em sua VII edição, por meio da Resolução 96.
[12] Importante destacar o Projeto de Lei do Senado 513/2013, que apresenta diversas medidas para solucionar problemas do sistema carcerário, como a vedação do contingenciamento dos recursos do Funpen; a criação de novos órgãos da execução penal; a revisão dos direitos e deveres dos presos; a inclusão de direitos dos presos estrangeiros; e a extinção das carceragens em Delegacias de Polícia no prazo de quatro anos.
[13] Cf. artigo de minha autoria: É preciso repensar o modelo cautelar no processo penal. Publicado em 9.2.2013. Disponível em:
[14] Diante desse quadro, mostra-se oportuna a iniciativa do CNJ em dar cumprimento às citadas imposições legais, conforme deliberação plenária daquele órgão em procedimento específico sobre o tema Processo de Ato Normativo 0001731-41.2012.2.00.0000. Encontra-se em elaboração no CNJ, em cumprimento à deliberação do Plenário, projeto de resolução disciplinando o assunto. Sobre o mesmo tema, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 554/2011, que altera o §1º do art. 306 do CPP para determinar a apresentação do preso à autoridade judicial no prazo de 24 horas após a sua prisão em flagrante.
[15] Em relação especificamente ao Tribunal do Júri, devem ser efetivadas iniciativas que agilizem e concedam maior efetividade às investigações, denúncias e julgamentos de homicídios. Dados alarmantes de Porto Alegre exemplificam o quadro atual: Promotores de Justiça que atuam na Promotoria do Júri na capital gaúcha declararam que 75% dos homicídios da cidade estavam à espera de solução. Depois de mutirão realizado na Delegacia de Homicídios, 1.095 inquéritos foram encaminhados de homicídios praticados nos anos de 2007 e 2008, dos quais 823 não tinham indiciamento, por não ter sido a autoria caracterizada. (Cf. relatório da ENASP – Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública).
[16] Iniciativas com vistas a um melhor funcionamento do sistema de justiça podem ser estimuladas dentro do próprio Judiciário, como, por exemplo, a adoção, pela Vara de Execuções Criminais de Curitiba/PA, de sistema de gerenciamento automático de requisitos para progressão de regime e outros benefícios, pelo qual tem sido possível a realização, em apenas uma semana, de audiências com presos, que antes demoravam meses e até anos.


Gilmar Ferreira Mendes é ministro do Supremo Tribunal Federal, professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB); Doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha; Membro Fundador do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP); Membro da Comissão de Veneza e Membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (IDP).


sábado, 5 de abril de 2014

JUSTIÇA SOLTA 17 PRESOS CULPANDO GREVE DOS AGENTES

DIÁRIO CATARINENSE 25/03/2014 | 19h15


Confira a decisão judicial que levou a polícia a soltar 17 presos em São José. Juíza cita greve dos agentes em boa parte da determinação.

Diogo Vargas



A greve dos agentes penitenciários aparece como ensejador da decisão judicial que levou a polícia a soltar 17 presos por crimes graves das delegacias de polícia de São José, na Grande Florianópolis, na tarde desta terça-feira.

No meio da tarde, sem vagas no sistema prisional, os delegados decidiram cumprir a medida judicial e soltaram todos os detentos que ocupavam duas delegacias de São José. Entre os liberados havia presos por crimes graves como estupro, assalto e assassinato.

A decisão judicial, a que o Diário Catarinense teve acesso, tem 24 linhas e foi proferida ainda na sexta-feira da semana passada. A Polícia Civil diz que tentou nos últimos dias vagas para encaminhar os presos e evitar a soltura, o que não foi possível.

O documento é assinado pela juíza da Vara de Execuções Penais, Alexandra Lorenzi da Silva. Ela cita a greve dos agentes penitenciários em quatro dos seis parágrafos.

"Entendo que o direito de greve dos agentes não pode ser considerado de forma absoluta, uma vez que há outros direitos fundamentais que devem ser tutelados", diz a juíza.

A magistrada lembra também que as celas em que estavam os presos, a 2ª DP em que também funciona a Central de Polícia, haviam sido interditadas e não apresentam condições de manter qualquer pessoa.

"Dessarte, há imperativa necessidade de flexibilizar o direito de greve em detrimento ao respeito da dignidade da pessoa humana, sob pena de estarem os grevistas perdendo a legitimidade de suas reivindicações", observa a juíza.

Ela também lembra a decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que determinou o imediato fim da greve, inexistindo com isso respaldo para a negativa do recebimento dos presos no sistema prisional.

Ao final, a magistrada ressalta que os agentes que negarem a entrada dos presos no sistema prisional estarão sujeitos as penas por desobediência e improbidade administrativa.

A íntegra da decisão judicial:

Conforme comunicação feita pelo Delegado de Polícia Osmar Carraro Junior (anexo), há 5 (cinco) presos custodiados na 2ª Delegacia de Polícia de São José, local onde também funciona a Central de Polícia do município.

Segundo a informação, os presos permanecem na Delegacia, uma vez que houve negativa do DEAP — Departamento de Administração Prisional em recebê-los, com fundamento na greve dos agentes penitenciários, fato presenciado por servidor lotado na Vara Regional de Execuções Penais de São José.

Entendo que o direito de greve dos agentes não pode ser considerado de forma absoluta, uma vez que há outros direitos fundamentais que devem ser tutelados. As celas da 2ª Delegacia de Polícia de São José estão interditadas, justamente por não apresentarem condições de manter qualquer pessoa.

Dessarte, há imperativa necessidade de flexibilizar o direito de greve em detrimento ao respeito da dignidade da pessoa humana, sob pena de estarem os grevistas perdendo a legitimidade de suas reivindicações.

Ressalto, por oportuno, que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em decisão de antecipação dos efeitos de tutela proferida em 20/03/2014 (Processo 2014.016295-6), determinou a cessação imediata da greve, inexistindo, in casu, respaldo para a negativa do recebimento dos presos.

Ante o exposto, DETERMINO ao DEAP a aceitação dos presos oriundos das delegacias de polícia desta Comarca na Central de Triagem do Estreito/Florianópolis, sob pena de desobediência, improbidade administrativa por descumprimento de ordem judicial e de soltura dos presos mantidos irregularmente nas delegacias, estando os servidores que negarem a entrada dos presos sujeitos às mesmas penas, cabendo, inclusive, prisão em flagrante em caso de desobediência.

Notifique-se. Intimem-se. Cumpra-se.

São José, 21 de março de 2014

Alexandra Lorenzi da Silva

Juíza de Direito


DIÁRIO CATARINENSE

sexta-feira, 4 de abril de 2014

PROMOTORA ASSOCIA CRIMINALIDADE À ETNIA E CAUSA REVOLTA

O SUL Data:3/abr/2014, 17h11min

Promotora de Justiça associa criminalidade à etnia e causa revolta





A promotora Melissa Juchem | Foto: MP-RS

Fernanda Morena


Em entrevista concedida ao jornal O Fato Novo, de Taquari, a Promotora do Ministério Público Estadual Melissa Juchem causou constrangimento público levando a Câmara de Vereadores a lançar uma moção de repúdio às suas declarações. Conforme a reportagem publicada no dia 21, Melissa teria ligado os baixos níveis de condenações criminais na comarca a aspectos culturais do júri. “…o povo é corrupto, aceita e é condescendente com as práticas ilícitas”, disse ela na entrevista.

“Cidades de origem alemã, em que as pessoas são mais rígidas e corretas, as condenações em júris são de praticamente 100%. Aqui, que é uma cidade de origem açoriana, em que a população se acostumou a conviver com um cinturão de pobreza, violência e drogas, sendo a comunidade um pouco mais condescendente com determinadas práticas violentas e criminosas.” (trecho da entrevista)

Na última sexta-feira (28), a Câmara de Vereadores aprovou uma moção de repúdio apresentada pelo vereador Luís Porto (PT) à entrevista da promotora. Conforme o documento, a entrevista dá conotação prejudicial à imagem da cidade. Apenas a bancada do PSDB, formada pelos vereadores João Batista Pereira e Tio Nei, não subscreveu a moção.

A promotora negou-se a conceder entrevista ao Sul21. Porém, a promotora e a Associação do Ministério Público do Rio Grande do Sul se pronunciaram através de nota divulgada nesta quarta-feira (2). O presidente da entidade, Victor Hugo Palmeiro de Azevedo Neto, assina a nota com Melissa Juchem. Nesta nota, a promotora diz nutrir “profundo respeito pela comunidade taquariense, com a qual conviveu harmônica e respeitosamente por aproximadamente três (03) anos e pelo mesmo período dedicou toda sua força laboral, como pode ser testemunhado por todos aqueles que acompanharam sua trajetória profissional e as ações empreendidas no cumprimento de seus deveres funcionais” (…).

A entrevista

A entrevista concedida ao jornal O Fato Novo é uma avaliação da promotora dos três anos em que atuou em Taquari. Ela analisa sua participação na investigação do governo Emanuel Hassen de Jesus (PT), o Maneco, e do vice-prefeito André Barcellos Brito (PDT), que culminou na cassação dos políticos em dezembro do ano passado.

Indo além, Melissa comentou a respeito do baixo número de condenações nas comarcas locais, alegando ser este um problema cultural da sociedade.

“É um problema da Comarca de Taquari, no sentido de que o corpo de jurados daqui é condescendente com o crime, por exemplo, acha que em uma tentativa de homicídio, já que não houve a morte, a conduta pode ser perdoada. Isso tem muito a ver com a natureza da cultura. Cidades de origem alemã, em que as pessoas são mais rígidas e corretas, as condenações em júris são de praticamente 100%. Aqui, é uma cidade de origem açoriana, em que a população se acostumou a conviver com um cinturão de pobreza, violência e drogas, sendo a comunidade um pouco mais condescendente com determinadas práticas violentas e criminosas. Durante esses 10 anos como Promotora, trabalhei em comarcas de diversas etnias, alemã, italianas e portuguesa, reputando que Taquari possui simetria funcional com a Comarca de Itaqui, onde iniciei minha carreira. Similar na formatação social, nas demandas e nesta questão dos júris. A absolvição no júri é uma questão social mesmo, de cultura, de pensamento da população.”

A promotora comenta também sua escolha em deixar Taquari para assumir a comarca de Carlos Barbosa. Ela explica, no texto, que novas vagas foram abertas em cidades que ofereciam estruturas de lazer e cultura mais desenvolvidas, e que a alternância entre os cargos no Judiciário, como no Executivo e Legislativo, são naturais e necessárias. Logo, volta a criticar as dificuldades do trabalho em Taquari – um município, segundo ela, bastante polarizado entre dois partidos:

“Eu saio com uma sensação de dever cumprido e feliz porque Taquari é uma cidade difícil de trabalhar, por ser uma cidade pobre, com carência de políticas públicas que determinam uma sobrecarga de trabalho para o Ministério Público. E, nesse caminho, eu tenho a tranquilidade de dizer que eu dei o sangue e que muita gente reconhece [...] Eu saio com a sensação de dever cumprido, inclusive no que diz respeito à atuação eleitoral. Tirando o desgaste das questões ideológicas partidárias da cidade, que é muito partidarizada, minha atuação serviu para mostrar que existe lei, que existe fiscalização. Mas serviu, infelizmente, para mostrar que o próprio povo é corrupto, aceita e é condescendente com as práticas ilícitas que foram denunciadas.”

As críticas




Vereador Luiz Porto foi o autor da moção lida na Câmara de Taquari em repúdio à entrevista. | Foto: Câmara de Taquari

A vereadora Rejane Porto (PT) subscreveu a moção. Para ela, os comentários da promotora acerca da sociedade “não foram felizes”. “Somos um povo de classe média baixa, mas muito trabalhador, valorizamos a nossa cidade. Ela não deveria ter colocado [as questões] dessa forma”. Nascida e criada em Taquari, Rejane diz que conhece bem a cidade e que ouviu reclamações da população sobre o teor dos comentários da advogada. “As pessoas se sentiram ofendidas”, relata.

O peemedebista Paulo Garcia declarou ser um grande admirador da promotora e do seu trabalho, porém discordou das declarações de Melissa Juchem, assinando a moção. Para ele, pessoas que ocupam cargos públicos devem ser referências: “Eu sempre apoio Taquari, e as pessoas públicas devem procurar preservar a cidade e as pessoas. Ela foi infeliz ao fazer alusões à raça, etnia, à origem da cidade, da qual nos orgulhamos”.

O apoio

A bancada do PSDB, formada pelos vereadores João Batista Bastos Pereira e Tio Nei, não subscreveu a moção por acreditar que o documento era uma manobra política para prejudicar a promotora por esta ter sido personagem-chave da cassação do mandato do prefeito Maneco. “Não assinamos a moção porque não vamos entrar nesse jogo político de dar troco a quem quer que seja”, explicou o líder da bancada tucana, João Batista. Apesar de qualificarem os comentários étnico-sociais da promotora como “infelizes”, os tucanos acreditam haver muitas verdades no discurso da mesma.

Tio Nei também acreditava que o texto apresentado na Câmara estava ligado ao esquema de compra de votos. “concordo que as palavras dela foram meio salgadas, mas ela tem um pouco de razão. E ela é mais culta que nós, vereadores. Os grandes têm conversa de grandes, os pequenos, de pequenos”, contemporizou.

A resposta

Na nota divulgada pela AMP/RS, as críticas feitas pela promotora são ratificadas sob a alegação de serem “realidade facilmente constatável”. “Quanto ao preconceito étnico, que teria sido revelado no que diz respeito aos resultados dos processos de Júri, em verdade, nesse aspecto, a Promotora nada mais fez do que reproduzir lição de consagrados autores e operadores do Direito que tratam do tema Júri Popular. A predominância de absolvições em determinados contextos culturais e étnicos é realidade facilmente constatável.”

Conforme O Fato Novo, os vereadores irão enviar a moção de repúdio ao Ministério Público Estadual, à Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado e ao Conselho Nacional do Ministério Público. Até o fechamento desta reportagem, o documento não havia sido enviado às instituições.

.oOo.

Leia a íntegra da nota divulgada pelo AMP/RS:


NOTA PÚBLICA DE ESCLARECIMENTO
A Associação do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (AMPRS) e a Promotora de Justiça signatária vêm a público, em face da repercussão causada pela entrevista publicada no jornal O Fato Novo, edição de 21 de março de 2014, esclarecer o seguinte:

Primeiramente, esclarece a Promotora de Justiça signatária que, ao contrário do que sugere a Nota de Repúdio emitida no âmbito da Câmara de Vereadores de Taquari, nutre profundo respeito pela comunidade taquariense, com a qual conviveu harmônica e respeitosamente por aproximadamente três (03) anos e pelo mesmo período dedicou toda sua força laboral, como pode ser testemunhado por todos aqueles que acompanharam sua trajetória profissional e as ações empreendidas no cumprimento de seus deveres funcionais de agente do Ministério Público nesse período.

Assim, nenhuma das opiniões reproduzidas pela reportagem do jornal teve como objetivo ofender ou desqualificar quem quer que seja. Além disto, todas decorrem de observações levadas a efeito durante o período em que atuou na Comarca. Basta examinar, para verificar a adequação das opiniões à realidade, o conjunto de processos criminais que, no período, tramitaram e tramitam na Comarca de Taquari.

Quanto ao avanço do tráfico de entorpecentes e sua deletéria investida em setores da sociedade, não se pode negar, trata-se de problemática universal. Ao revelar preocupação “com a sensação de apatia da comunidade” com tão grandioso problema, é óbvio que não pretendeu a signatária maldizer, ofender ou menosprezar a comunidade local. O objetivo foi chamar atenção da mesma, muitas vezes desconhecedora da realidade vivenciada no âmbito interno das Instituições da Justiça, para a complexidade do problema que envolve questões de política criminal e saúde pública, constatável na Comarca de Taquari pelo grande número de internações compulsórias ajuizadas e pelo incremento significativo dos crimes contra o patrimônio como efeito reflexo do consumo de drogas.

Quanto ao preconceito étnico, que teria sido revelado no que diz respeito aos resultados dos processos de Júri, em verdade, nesse aspecto, a Promotora nada mais fez do que reproduzir lição de consagrados autores e operadores do Direito que tratam do tema Júri Popular. A predominância de absolvições em determinados contextos culturais e étnicos é realidade facilmente constatável.

Por fim, ao mesmo tempo em que se reconhece o direito à crítica e de livre manifestação, lamentam os signatários a tentativa de exploração política da entrevista, lançadas, quem sabe, com o intuito de desmerecer o trabalho sério exercido pela Doutora Promotora de Justiça e pelo Ministério Publico, reafirmando que ações como esta somente fortalecem o espírito dos membros da Instituição em seu incansável trabalho em prol da efetivação de seus deveres funcionais.

Porto Alegre, 2 de abril de 2014.

Victor Hugo Palmeiro de Azevedo Neto
Presidente da AMP/RS

Melissa Juchem,
Promotora de Justiça

quinta-feira, 3 de abril de 2014

DIREITO À CRÍTICA E VERDADE




ZERO HORA 03 de abril de 2014 | N° 17752

ARTIGOS


por Eugênio Couto Terra*




Discordar de uma decisão judicial é um direito de todo cidadão. Criticá-la é exercitar a liberdade de expressão.

Em artigo publicado na ZH de 30 de março (página 12), o promotor de Justiça Eugênio Paes Amorim, alçando-se à condição de arauto da verdade absoluta, resolveu questionar de forma genérica o trabalho de órgão fracionário criminal do Tribunal de Justiça do Estado.

Menciona dados que afirma estatísticos – sem apontar qual a base de dados que usa – e ataca genericamente o resultado de decisões prolatadas pela primeira câmara criminal. Faz referência a julgamentos de outras câmaras criminais do Tribunal. Os termos utilizados são “bandidos absolvidos, na sua maioria perigosos marginais...” e por aí vai. Ainda que impressione num primeiro relance, há total ausência de concretude em relação ao que sustenta.

Todo mundo sabe que o julgamento de um caso criminal é sempre um trabalho de exame do caso concreto. Tem que se verificar cada fato e ver como a lei penal deve ser aplicada àquela situação. Generalizar na esfera criminal é o caminho fácil utilizado por quem quer impor suas convicções criminalizantes como padrão para a sociedade.

O articulista, entretanto, pasmem, disse mais! Tenta convencer que a aplicação da lei penal não pode ser interpretada. Para ele, só é bom julgador quem concorda com suas posições interpretativas.

A hermenêutica jurídica é um dever de todo magistrado no momento de aplicar a lei ao caso concreto. Não há dono da verdade. A prestação jurisdicional tem que ser feita com independência e de acordo com a convicção que cada um extrai do exame do fato. E ainda bem que é assim. Do contrário, viveríamos numa sociedade de pensamento único e totalitário, antítese da pluralidade de ideias e diversidade que fundamentam o Estado democrático de direito.

É lamentável, para dizer o menos, a forma como age o autor do artigo no afã de impor sua ideologia de penalização e encarceramento. Tenta constranger a atuação da magistratura. Joga com as palavras e com o sentimento de insegurança que há na sociedade, que tem origem em outras causas, para tolher a independência judicial.

O Poder Judiciário do RS é plural e independente. Seus magistrados continuarão interpretando a lei e julgando de acordo com suas convicções, cumprindo a sua missão constitucional de prestar jurisdição.

Repetir e insistir na ideia do pensamento único para o ato de julgar é que é coisa de pachola. Esta é a verdade.


*PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES DO RIO GRANDE DO SUL (AJURIS)