Almir Sobral
Segundo o lexicógrafo Aurélio, delegado é aquele que é autorizado por outrem a representá-lo, ou seja, é a pessoa que recebeu uma delegação cujas funções e atribuições não lhe são próprias. Comparável significação encontramos no direito romano onde a investigação foi estruturada em um processo chamado "inquisitio", isto é, trabalhos investigatórios para se apurar as circunstâncias do crime e localizar o criminoso. Tratava-se de uma delegação de poderes feita pelo magistrado à própria vítima ou parentes, que se transformavam em investigantes e acusadores. Nascia, assim, a figura do delegado de polícia. Portanto, o atual vocábulo "delegado" guarda sentido absolutamente análogo aos procedimentos adotado pelos antigos romanos, entretanto o ente designado pela citada palavra sofreu uma significativa transformação.
Fazendo-se uma análise acurada do trabalho executado pelo delegado de polícia, torna-se evidente tratar-se de um simples intermediário da investigação penal em razão de ele próprio, o delegado, jamais participar diretamente das citadas investigações, salvo raríssimas exceções, posto que as suas tarefas prendem-se tão-somente à compilação de provas ou indícios perquiridos por outros policiais. Dessa forma, a maioria dos delegados de polícia não sai de seu gabinete para buscar elementos elucidativos do fato ilícito a ser investigado ou para capturar o criminoso, portanto trata-se de um policial atípico que trabalha estritamente entre quatro paredes, fato gerador de grande perplexidade em policiais estrangeiros, haja vista ser inconciliável a investigação, que requer buscas incessantes por evidências do acontecimento ilegítimo, com as atividades puramente burocráticas e sedentárias exercidas pelo delegado.
Como se vê, é desnecessário ser especialista para se reconhecer um verdadeiro paradoxo nas atribuições do delegado de polícia. Mas o contra-senso não para por ai, isto é, sabendo-se que realmente a investigação não é realizada pelo delegado e sim pelos policiais que vão a campo efetuar a investigação, os treinamentos e especializações deveriam ser direcionados a esses policiais que realmente investigam, mas não é isso que acontece, no instante no qual surge a oportunidade de realização de aprimoramento através de cursos, na maioria das vezes quem vai fazê-lo é o delegado que nunca coloca em prática o que aprendeu, incrementando a ineficácia policial com o consequente dano à sociedade.
Ao que parece, os delegados sempre aspiraram exercer a tão sonhada "atividade jurista", mas policial-jurista faz sentido? Isso soa como um desvario. Afinal, não é o policial quem deve esclarecer uma infração penal? Por outro lado, juristas não são os profissionais que lidam com a ciência jurídica, cujas tarefas associam-se à sistematização do ordenamento jurídico? Realmente, não tem cabimento essa distorcida concepção jurista para a polícia, o policial deveria ter o foco centrado nas técnicas de investigação e prevenção ao crime, em lugar de divagar no exercício de seu trabalho. A pretensão de ser policial-jurista é uma clara ofensa à lógica, mas os delegados nunca desistiram dessa quimera, concentrando as suas forças no Poder Legislativo a fim de modificar a norma legal em proveito próprio. Já na Constituição Federal de 1988 foi inserido o termo "polícia judiciária", inexistente na CF de 1967, nessa expressão o verbete “judiciária” é impróprio para designar atividades policiais. Vejamos a definição de De Plácido e Silva, para a palavra JUDICIÁRIO, em seu Vocabulário Jurídico, Ed. Forense 11a Edição:
“Derivado do latim 'judiciarius', adjetivamente é empregado o vocábulo, na linguagem forense, para designar tudo que se refere à justiça ou ao juiz. Substantivamente, é usado para designar um dos poderes públicos, a que se comete autoridade para administrar a justiça.” Portanto, as autoridades policiais conseguiram inserir esse termo inepto na nossa Constituição Federal. Assim, a utopia permeia os devaneios da categoria que sempre lutou com persistência a fim de atingir as suas cobiças corporativistas. Para isso, o caminho mais curto, segundo eles próprios, é através do parlamento, dessa forma, hoje no Congresso Nacional há vários parlamentares-delegados (ou delegados-parlamentares) que tentam legislar em benefício da própria categoria ou procuram convencer os demais congressistas a apoiarem as suas idéias. Dentre esses intentos está o recente Projeto de Lei da Câmara (PLC) 132 que tramitou rapidamente no CN e teve várias manifestações contrárias, uma delas é originária do mestre Wendell Beetoven Ribeiro Agra, promotor de Justiça (MPRN), especialista em Direito Processual Civil e mestrando em Segurança Pública, vejamos suas razões: "O PLC 132, como um todo, representa um retrocesso, na medida em que consolida um instrumento obsoleto como o inquérito policial como o principal meio de investigação policial, favorecendo ainda o bacharelismo ao privilegiar uma classe de policiais civis (os delegados) em detrimento das demais (agentes, escrivães peritos e papiloscopistas), criando uma espécie de "magistratura policial". Nesse contexto, o indiciamento é mais uma burocracia inútil que, agora, ganha o potencial de repercutir negativamente na persecução penal, sem trazer, em contrapartida, qualquer garantia adicional ao investigado." Apesar dos significativos apelos de autoridade especialistas no assunto, contrários a esse disparate, em 20 de junho de 2012 o PLC 132 transformou-se na Lei 12.830.
Consagrando o bacharelismo, o relator do citado PLC 132 foi o senador Humberto Costa (PT/PE) cujo Assessor é o delegado de Polícia Federal Adilson Batista Bezerra, portanto, não por acaso encontra-se inserido no aludido "parecer" as premissas corporativistas defendidas por delegados e suas associações, segundo as quais "o inquérito policial é uma garantia do cidadão". Evidentemente, essa assertiva é um sofisma, trata-se de argumento falso para induzir a erro, até porque o instituto do indiciamento é uma inculpação travestida de relatório, com repercussão social equivalente a uma punição em razão de a sociedade passar a rejeitar o "indiciado", considerando-o culpado das imputações antes mesmo do julgamento. Lembramos a notícia publicada pela mídia em 24/05/2007 onde o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, acusa a Polícia Federal de "canalhice". A reação do Ministro foi motivada pela informação, vazada de inquérito que corria na Polícia Federal, segundo a qual o seu nome teria aparecido em uma suposta lista da PF entre os acusados de receber "benefícios" da empresa Gautama - apontada como a coordenadora do esquema de fraudes em licitações públicas desmontado pela Operação Navalha.
Depois esclareceu-se que o "Gilmar Mendes" mencionado na suposta lista é um homônimo do ministro - que se chama Gilmar de Melo Mendes e seria engenheiro civil em Sergipe. Mas a moral do Ministro já estava abalada. Desse modo, fica evidente que o delegado da Polícia Federal não respeitou sequer as garantias do Ministro do Supremo Tribunal Federal, conclui-se portanto, que muito menos respeitará as garantias do cidadão comum. Fatos como esse se vê constantemente no "Jornal Nacional" e outras mídias, onde trechos de monitoramento telefônico efetuados pelas Polícias Federal e Civis são publicados antes mesmos de confirmada ou analisada a culpabilidade dos envolvidos. Assim sendo, um sem números cidadãos são expostos pela polícia à execração popular e depois declarados inocentes pela justiça. Portanto, o inquérito policial é o avesso da garantia individual pelo fato de propiciar o abuso da autoridade policial.
Ao que parece, os delegados de polícia têm um desejo desmesurável pelo poder, desse modo, prevalecendo-se da grande corrupção e ilicitudes que pairam no meio político, cujo maior repressor tem sido o Ministério Público, razão pela qual muitos parlamentares são adversos ou inimigos do MP, as "autoridades policiais" apresentaram a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, através do deputado-delegado Lourival Mendes (PT do B-MA), que propunha exclusividade na investigação criminal para eles próprios, ou seja, o propósito dos delegados é eliminar a possibilidade de que quaisquer outros órgãos possam ter as prerrogativas de efetuarem investigação criminal, tornando essa tarefa privativa de delegados de polícia. O conteúdo da PEC 37 é bastante agradável para muitos parlamentares que passaram a apoiar de pronto essa emenda constitucional porque estavam diante da efetiva possibilidade de redenção criminal para os políticos corruptos, isto é, iria prevalecer a impunidade em razão do fácil e grande poder de controle das polícias exercidos pelos governadores, ministro da justiça e até por políticos do "baixo clero". Dessa forma poder-se-ia infligir um tapa-boca no Ministério Público contra a sua brilhante luta em desfavor da devassidão política. De fato, alguns dias antes do projeto ir à votação, as pesquisas indicavam a sua aprovação iminente e por ampla maioria. Entretanto, inesperadamente, conforme palavras do delegado-deputado Lourival Mendes, autor da PEC 37, "aconteceu um acidente de percurso", isto é, eclodiram intensas manifestações populares de descontentamento de norte a sul do País, como não se via há anos no Brasil. O povo estava indignado com uma sucessão de patifaria política. Uma das reivindicações das ruas exigia a extinção da PEC 37, a rotulada "PEC DA IMPUNIDADE". Ainda houve uma manobra do presidente da Câmara do Deputados, Henrique Alves, na tentativa de iludir o povo, tirando a mencionada PEC da pauta de votação sob as alegações de que queria ouvir as bases, mas pressionado pelas fortes manifestações de ruas, retrocedeu. Assim, a Câmara dos Deputados derrubou essa malfadada PEC 37, por 430 votos a 9 (e 2 abstenções). Venceu o povo brasileiro que nem sempre é representado de forma digna, até porque a lógica natural aponta para a adesão e alianças direcionadas ao combate à criminalidade, em lugar do corpotarivismo. Enquanto nos Estados Unidos, por exemplo, são 17 diferentes agências responsáveis pela investigação criminal; aqui no Brasil os delegados pretendiam ficar exclusivamente só e somente só eles com essa tarefa. Trata-se de fato enigmático, até porque não queriam obter um direito, até porque esse mesmo direito sempre lhes pertenceu, o que eles buscavam era eliminar todos os concorrentes desse direito. Há quem diga que por trás dessa pretensão havia intenções tenebrosas.
Puro egoísmo, os delegados baniram os ensinamentos básicos provenientes da sabedoria popular: "a união faz a força"; "uma andorinha só não faz verão"; "juntos venceremos", para lutarem por um incompreensível exclusivismo, sem consideração aos interesses da sociedade. Portanto, em lugar de buscarem a união com os demais órgãos responsáveis pela persecução penal, a fim de aprimorar a eficiência no combate à criminalidade e melhorar o nosso País, eles, os delegados, passaram a hostilizar principalmente o Ministério Público e divulgar enganosas afirmações para confundir a sociedade. As associações e sindicatos de delegados de todo o país e seus asseclas uniram-se para convencer à população sobre os "benefícios" da PEC 37, tamanha era a ânsia que as suas argumentações passaram a fugir dos parâmetros da civilidade e urbanidade, culminando com a publicação de uma charge, divulgada pela Associação dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), em que ridiculariza a figura do Ministério Público associando-a ao próprio demônio. Essa charge, denegrindo de forma maliciosa e irresponsável tão respeitável entidade, repercute como insanidade dos dirigentes da ADPF. Também entraram na mira dos delegados de Polícia Federal os agentes, escrivães e papiloscopistas da Polícia Federal, os reconhecidos Agentes Federais, apenas por posicionarem-se contrários à PEC 37, a quem a ADPF insidiosamente acusou de "querer ser delegado sem concurso". Maldade plena.
Na verdade, os Agentes Federais têm lutado pela modificação da sistemática de ingresso na Polícia Federal e pelo primor na estrutura do Órgão que necessita de inúmeras correções, portanto não poderiam apoiar a insensata proposta dos delegados que penalizaria a sociedade. Nos elementos constitutivos da Polícia Federal existem claros erros que comprometem a eficiência e produtividade da corporação. Vejamos um deles, uma clara deformação no arcabouço da polícia brasileira: os delegados, ao iniciarem em suas atividades profissionais, imediatamente depois do curso de formação, entram na instituição na condição de chefe de experientes policiais, isto é, trata-se de delegados com experiência zero, por conseguinte sem os necessários conhecimentos e habilidades adquiridos em função da prática policial, os quais são designados para dirigir e comandar experimentados policiais, em óbvia inversão de valores e agressão aos princípios da razoabilidade e da experimentação profissional. De cara já se vê algo errado, até porque, no caso da Polícia Federal, todos os policiais têm formação de nível superior com diplomas de renomadas universidades e treinamento profissionalizante. Esse disparate fica bem evidenciado ao compararmos a nossa polícia com as polícias da Europa e Estados Unidos, onde o ingresso na corporação ocorre na classe inicial, sobrevindo uma gradativa evolução, em razão do tempo de serviço, do mérito pessoal e da aptidão profissional, na qual qualquer integrante pode galgar o topo da hierarquia. Portanto, nesses países, os chefes de polícia efetivamente têm experiência policial porque exerceram todas as etapas e segmentos funcionais, adquirindo assim habilidade prática no exercício do ofício policial, ao contrário do que aqui ocorre. Eis uma das razões da ineficácia da polícia brasileira onde menos de oito por cento dos assassinatos são esclarecidos, ou seja, mais de noventa e dois por cento (92%) dos homicídios ficam impunes e os assassinos sequer são identificados. É uma estatística assustadora. Essa estatística está associada à estrutura policial em que não prestigia a motivação profissional, isto é, as forças propulsoras da ação. Ao desconsiderar o mérito individual do policial, joga-se no lixo os princípios da motivação que é o fator determinante para que as pessoas ofereçam o melhor de si. Quem perde é o povo que assiste o aumento da criminalidade e não sabe o porquê.
Quanto à PEC 37, a principal argumentação dos delegados repousa na suposta legalidade, mas há fortes controvérsias e teses convincentes, oriundas de grandes juristas, contrárias a citada argumentação. Contudo, independentemente dessa questão, a lei suprema de uma nação deve conter as diretrizes segundo as quais a sociedade deva ter uma vida digna e justa, portanto ao reformá-la, espera-se que essa modificação evolua para diretrizes que propicie uma qualidade de vida melhor, em lugar de retroagir, na contra-mão dessa premissa, tal qual a PEC 37 onde o que já era ruim ficaria péssimo.
Como vimos, os delegados de polícia, ao longo desses anos, têm-se organizado para alcançar os seus objetivos corporativistas. Para isso adotam expedientes dos mais variados, um deles é a mencionada candidatura a cargos eletivos para o Congresso Nacional onde, como foi dito, existem vários delegados exercendo mandato de deputado federal, um deles é o deputado-delegado Alexandre Silveira de Oliveira (PPS/MG), autor de outra Proposta de Emenda Constitucional não menos disparatada e em causa própria, trata-se da PEC 293 que pleiteia para os delegados de polícia, afora uma carreira de natureza jurídica, inamovibilidade e vitaliciedade, ou seja, as garantias de juízes. Essa proposição é um absurdo contrário à razão e ao bom senso. Se análogo dispositivo for inserido em nossa Carta Magna, a administração da polícia tornar-se-á inviável, impedindo que chefes de polícia, secretários de segurança públicas e gestores de polícia procedam o remanejamento de delegados para atender claros de lotação ou necessidade sociais específicas. Por outro lado, mesmo não tendo as garantias inerentes aos juízes, não são raros os abusos de poder por parte dos delegados, entretanto se essas garantias lhes for outorgada certamente esses abusos serão incontroláveis. Juízes e membros do Ministério Públicos, estes sim os verdadeiros juristas, são constitucionalmente impedidos de exercer atividade político-partidária, os delegados não.
Não bastasse a infiltração de delegados no Congresso Nacional, o Departamento de Polícia Federal dispõe uma divisão chamada "Assistência Parlamentar", a famigerada ASPAR, ligada diretamente à direção-geral do órgão, ou seja, trata-se de pelo menos um delegado que exerce as suas atividades tão-somente no Congresso Nacional. Mas qual a tarefa desse delegado? Ninguém sabe, ao menos não há uma descrição detalhada de suas atribuições no organograma da instituição, tratando-se, essa omissão, de infração à nossa CF em seu art.37. Há quem diga que as suas rotinas são gerir "inquéritos auriculares" perante os congressistas. Na verdade é incompreensível o fato da Polícia Federal designar um delegado para estabelecer-se no CN sob a égide da estrutura do DPF. Por mais imaginação que tenhamos, é muito difícil, senão impossível, associar as atividades de polícia às funções puramente legislativa exercidas por deputados e senadores. Há bem pouco tempo, o assessor parlamentar do DPF era nada menos do que o presidente da Associação dos Delegados de Polícia Federal, dando margem à conclusão segundo a qual a ASPAR/DPF tem finalidade corporativista.
Portanto, além da função do delegado se sobrepor à de intermediário da investigação policial, acontecimento que extrapola os limites da coerência, os atos dessa categoria em proveito próprio não são nada republicanos e, efetivamente, ameaçam a persecução penal.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Não é a toa que a polícia vem sendo desvalorizada e discriminada pela justiça criminal brasileira, impedindo a construção de um sistema capaz de interagir, agilizar e dar seguimento aos processos contra as ilicitudes que assolam o país. É claro que há exageros na busca por mais poder em todas as esferas, mas isto é alimentado pela falta de leis que normatizem um sistema de justiça criminal célere, independente, integrado e comprometido com a supremacia do interesse público envolvendo a vida, a saúde, o patrimônio e o bem-estar das pessoas.
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