Levantamento de ZH mostra que 70% dos casos de homicídio cometidos em janeiro não chegaram aos tribunais. Dos 88 casos de assassinato nas 11 cidades mais violentas do Estado, em janeiro, apenas 30,7% dos suspeitos foram denunciados
Heloisa Sturm e José Luis Costa
Um levantamento de Zero Hora sobre homicídios registrados em janeiro revela que apenas 30,7% dos suspeitos dos crimes foram denunciados à Justiça pelo Ministério Público (MP). De 88 casos de assassinatos ocorridos nas 11 cidades mais violentas do Estado, em 48 deles, a Polícia Civil concluiu as investigações, indicando nomes dos supostos criminosos.
Do montante, os promotores entenderam que 27 casos continham provas para levar os suspeitos ao tribunal. Assim, 69,3% — sete em cada 10 — dos homicidas ainda não foram processados criminalmente.
O mapeamento produzido por ZH baseou-se no andamento dos casos na Justiça até 10 de outubro. A maioria dos inquéritos policiais (68,7%) foi finalizada até junho.
O levantamento considera números do primeiro mês de 2013, justamente por ser esse o período em que se iniciaram as atividades nas novas unidades policiais especializadas. Transformadas em Delegacias de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPPs), as novas estruturas têm como finalidade investigar homicídios consumados e tentados.
Apesar de os dados sugerirem demora para que a Justiça se realize, pesquisadores, magistrados e promotores consultados por ZH definem a situação como positiva. Para Marcelo Dornelles, subprocurador de Justiça para Assuntos Institucionais do Ministério Público, o balanço de janeiro pode ser considerado positivo:
— Em comparação com a média nacional, os índices de esclarecimentos são muito bons. Há cinco anos, o índice era de 8% no Estado. Com as novas delegacias, melhoraram não só o número de casos esclarecidos como a qualidade dos inquéritos.
Drogas são a principal causa
Com relação aos inquéritos finalizados mas sem denúncias, o promotor entende que a maioria está em poder da polícia para complementar investigações solicitadas pelo MP.
Opinião semelhante tem o sociólogo Rodrigo Azevedo. Segundo ele, a taxa de esclarecimento melhorou em razão do incremento na estrutura policial, que nos últimos anos ampliou a capacidade de investigação.
Azevedo lembra que a maioria dos homicídios envolve disputas entre traficantes, o que dificulta a identificação do autor. Entretanto, enfatiza que é necessário cobrar da polícia cada vez mais melhores resultados.
— Se tem algo que a polícia tem de esclarecer é o homicídio. A impunidade incentiva a prática de novos crimes. E, neste tipo de crime, é fundamental que os autores sejam processados e julgados — afirma o sociólogo, professor adjunto de pós-graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS).
O pesquisador complementa:
— A condenação tem papel preventivo, pois tira o criminoso de circulação.
O presidente do Conselho de Comunicação do Tribunal de Justiça (TJ) do Estado, Túlio de Oliveira Martins, também avalia como bom o saldo de janeiro. Segundo ele, a investigação policial não é uma ciência exata, e há casos que demoram até anos para serem solucionados.
Quanto ao percentual de 30,7% de denúncias com autoria conhecida, Martins assegura que a proporção registrada no Rio Grande do Sul está dentro do normal. Segundo ele, do início da investigação até o julgamento de um crime, as provas vão sendo depuradas à medida que são analisadas em várias instâncias — pelo delegado, pelo promotor e pelo juiz.
Criminalistas questionam critério de dados oficiais
A Polícia Civil gaúcha considera como assassinatos elucidados tanto os crimes com autor identificado quanto os casos nos quais o inquérito ainda estão em andamento, mas que o autor já foi identificado, com provas coletadas contra ele.
Por este critério, o índice de elucidação de casos é de 73% nas 11 cidades mais violentas do Estado.
— Para efeito de investigação, consideramos esses casos elucidados. Às vezes, falta um laudo pericial ou ouvir uma testemunha. Embora não tenha sido remetido, já podemos considerar o caso esclarecido — diz o chefe da Polícia Civil, Ranolfo Vieira Junior.
O critério adotado pela polícia gaúcha, porém, é questionado por criminalistas, promotores e especialistas em segurança pública consultados por Zero Hora. No entender do advogado e professor universitário Alexandre Wunderlich, um homicídio só pode ser elucidado quando a investigação foi concluída, e o inquérito, remetido com o nome do suspeito.
— Considera-se inquérito esclarecido após encaminhado com as conclusões para a Justiça — avalia Marcelo Dornelles, subprocurador de Justiça para Assuntos Institucionais do Ministério Público.
— O esclarecimento se dá quando do indiciamento, que é um ato formal previsto em lei — acrescenta o delegado Rivaldo Barbosa Junior, diretor da Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro.
O Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de São Paulo tem a mesma interpretação, assegura o analista criminal paulista Guaracy Mingardi:
— Para constar nas estatísticas, o que vale é o inquérito com relatório do delegado, indiciando o autor.
Na amostra de janeiro, ZH constatou que 54,5% dos casos foram concluídos com indiciamento. Para o delegado Ranolfo, o dado apurado por ZH, o índice de esclarecimento mesmo considerando outra metodologia, "é satisfatório".
Em outros países, como a Inglaterra, onde a taxa de esclarecimento chegou a 96% entre julho de 2011 e julho de 2012, um crime pode ser considerado esclarecido quando o suspeito é preso e/ou processado. Na Alemanha, cujo índice de elucidação de homicídios é semelhante ao dos britânicos, só entram na estatística casos ocorridos e solucionados dentro de um mesmo período de tempo.
Suspeito segue livre
Rudinei dos Santos, o Rudi, natural de Carazinho, no norte do Estado, é apontado em inquéritos policiais e denúncias do Ministério Público como autor de seis homicídios, dois deles em 2012 e quatro em janeiro. Desde junho, está foragido.
Aos 24 anos, condenado em dois processos por venda de drogas, Rudi é envolvido com traficantes no Morro Santana, na zona leste da Capital.
Conforme investigações, ele seria o responsável pela execução de duas pessoas em maio do ano passado – Elizandro Teixeira Paiva, 31 anos, e outra pessoa até hoje não identificada. As vítimas estavam enterradas em um matagal no bairro Jardim Carvalho, um “cemitério do tráfico”. A identificação de Rudi como suspeito demorou seis meses, mas até hoje ele não foi denunciado pelo crime.
Em janeiro passado, o mês ao qual se refere o levantamento de ZH, Rudinei voltou a matar. Na madrugada do dia 9, ele teria executado Luis Felipe Silva, 18 anos, e Michael Rosa Lopes, 26 anos, na Vila Chácara da Fumaça. Na mesma noite, Juares da Silva, 45 anos, apareceu morto na Vila Laranjeiras. Os autores seriam Rudi e dois comparsas – um deles foi assassinado em setembro passado.
A última vítima de Rudi teria sido o adolescente Leonardo Bilher, 14 anos, executado com tiros no rosto na Vila Laranjeiras, em 30 de janeiro. Em fevereiro, Rudi foi preso por porte ilegal de arma e, em abril, condenado a três anos e nove meses de prisão em regime semiaberto. Em junho, deixou o Presídio Central, para cumprir a pena em albergue, mas fugiu.
De acordo com a promotora Lucia Helena de Lima Callegari, por três vezes a Justiça negou pedidos de prisão preventiva de Rudi pelos quatro homicídios cometidos em janeiro. Apenas em setembro é que foi decretada a prisão preventiva de Rudi pelas duas mortes de 2012.
Executada por engano
A guerra do tráfico provocou um crime inusitado em Alvorada. A auxiliar de limpeza Maria Rosa da Silva, 56 anos, foi morta ao usar o banheiro de um bar, no Jardim Algarve.
Na noite de 12 de janeiro, acompanhada do companheiro, Paulo Ricardo Borges Rodrigues, 58 anos, Maria Rosa havia participado de um galeto com amigos. Na volta, ao descer de ônibus, teve vontade de urinar e decidiu não esperar até chegar em casa.
– Fiquei batendo papo com o dono no balcão, esperando por ela – lembra Paulo, funcionário de uma empresa de limpeza na Capital.
Tão logo Maria Rosa entrou no banheiro, um carro com dois homens parou diante do bar. Um deles desembarcou com uma pistola. Um dos frequentadores do bar correu em direção ao banheiro, tentando se esconder. Naquele instante, Maria Rosa abria a porta, foi gravateada e empurrada de volta. O homem se trancou com ela, e a fez de escudo. O intruso armado chutava a porta.
– Eu batia no ombro dele e dizia: “minha mulher está lá dentro, deixa ela sair do banheiro. Depois tu se acerta com ele” – conta Paulo.
Sem dar ouvidos, o homem disparou oito vezes contra a porta e fugiu. Paulo arrebentou o que restava da porta e achou a mulher caída sobre um poça de sangue. Maria Rosa levou três tiros, um deles na testa, e morreu na hora. O homem foi atingido na perna, acabou socorrido e desapareceu. O episódio pôs fim à união de quatro anos do casal.
– Estou apavorado. Mudei para outro bairro – conta Paulo.
A polícia identificou o motorista e o matador como sendo, respectivamente, Renato Pereira do Santos, o Tininho, 26 anos, e Alexandre da Silva Machado, o Aranha, 36 anos.
Dias depois, Tininho foi apontado como autor de outra morte, a de Diego Rafael Barth Guimarães, 29 anos. Tininho e Aranha foram denunciados e presos preventivamente em fevereiro pela morte de Maria Rosa.
NÚMEROS
Nos oito primeiros meses de 2013, o total de assassinatos nos 11 municípios mais violentos do Estado diminuiu 14,7% em comparação com o mesmo período de 2012.
No Estado, o índice geral de redução foi de 7,7%.
Em nove das 11 cidades, entre setembro de 2012 e agosto de 2013, a taxa de homicídios esclarecidos chegou a 68%
COMO ESTÃO OS 88 HOMÍCIDIOS DE JANEIRO/2013
— 48 casos têm indiciamento e 27 já foram denunciados
— 34 estão em investigação
— 6 estão na Justiça, sem indiciamento
OS CAMINHOS DA INVESTIGAÇÃO
— Inquérito - É o instrumento da Polícia Civil para apurar um crime. Inclui depoimentos, objetos apreendidos, fotos, exames e laudos periciais. Ao encerrar o inquérito, o delegado emite um relatório, apontando o autor (indiciado). Nos casos em que o criminoso não é descoberto, o inquérito é remetido sem indiciamento.
— Denúncia - É a peça produzida pelo MP para levar um indiciado a júri. Ao receber o inquérito com indiciamento e concordar com suas conclusões, o promotor apresenta a denúncia à Justiça. Em caso de divergência, pode devolvê-lo à polícia, solicitando novas investigações, ou pedir ao Judiciário o arquivamento do inquérito.
— Processo - Quando o inquérito policial chega à Justiça acompanhado da denúncia, o juiz analisa os documentos e, a partir disso, decide se aceita ou não a denúncia do MP. Quando aceita, dá início ao andamento do processo para julgar o réu. Caso a denúncia seja rejeitada, o processo não segue adiante.