Sete dos acusados respondem a processo criminal sem previsão para ir a júri
FLAVIO ILHA
O GLOBO
Atualizado:26/01/14 - 19h31
SANTA MARIA (RS) – O Ministério Público (MP) e a Polícia Civil do Rio Grande do Sul trocaram acusações neste domingo em Santa Maria sobre o destino dos responsáveis pelo incêndio da boate Kiss, que completa um ano nesta segunda-feira. Sete dos acusados respondem a processo criminal, que não tem previsão para ir a júri. Dois novos inquéritos que deverão ser concluídos em fevereiro devem provocar o indiciamento de servidores públicos por improbidade administrativa.
O confronto de posições ocorreu durante um congresso sobre prevenção de desastres, organizado pela Associação dos Sobreviventes e Familiares da Tragédia de Santa Maria (AVSTM). O delegado Marcelo Arigony, que foi aplaudido de pé pelas cerca de 200 pessoas que participavam do encontro, confirmou que novas denúncias serão encaminhadas ao MP depois de concluídos os inquéritos. Segundo ele, algumas irregularidades “ficaram mais evidenciadas” que na primeira investigação, concluída 55 dias após a tragédia. Arigony disse que há “provas materiais suficientes” que comprovam as irregularidades no licenciamento da Kiss.
— Agora, não posso comentar a análise que o MP fará. Nem saber se o órgão vai considerar (as provas) suficientes para sustentar uma ação penal. Da parte da polícia judicial, podem vir outras responsabilidades na esfera civil e na esfera da improbidade administrativa. São inquéritos referentes a fatos periféricos, mas que têm relação com o fato principal e especialmente com a questão do licenciamento. Embora os inquéritos não estejam concluídos, temos já evidenciadas algumas irregularidades — disse.
O MP, depois de receber o inquérito, rejeitou em abril do ano passado os indiciamentos feitos pela polícia em relação a servidores municipais e ao prefeito de Santa Maria, Cézar Schirmer (PMDB). O caso só não foi arquivado definitivamente por intervenção do Conselho Superior do Ministério Público, que exigiu a manutenção do caso até que os novos inquéritos policiais sejam encerrados. A investigação comprovou que houve falsificação de documentos para a abertura da boate.
— Nossa função foi esgotada. O inquérito apontou todas as circunstâncias a partir das evidências. As licenças e as fiscalizações não foram bem realizadas e mantiveram a boate funcionando. (O inquérito) vem comprovar o que temos dito: que a boate não tinha licença para funcionar por nem um dia. Não deveria estar funcionando. Sem entrar no mérito sobre se A ou B deveria ter fiscalizado, se A ou B deveria ter fechado, a boate não deveria estar funcionando. Mas não nos cabe comentar as decisões de outras autoridades — afirmou o delegado.
O subprocurador institucional do MP, Marcelo Dornelles, defendeu a atuação do órgão. Disse que a expectativa sobre punição não foi criada pelo Ministério Público e que “nenhum fato novo” surgiu até agora capaz de alterar a decisão de arquivamento das denúncias contra servidores. O procurador, que reclamou de ter interrompido as férias para participar do debate, também disse que não há informações suficientes para denunciar o prefeito de Santa Maria.
— Algumas omissões havidas não foram causa direta do incêndio. As pessoas têm que entender que as responsabilidades jurídicas e políticas são diferentes. Juridicamente, não se trouxe nenhum fato concreto que pudesse, de alguma forma, ser posto diretamente como uma participação efetiva do prefeito (no licenciamento). Isso foi dito desde o início e, de lá para cá, não houve nenhuma circunstância nova que alterasse isso — disse.
Dornelles, entretanto, admitiu que o MP pode considerar novas provas apontadas pelas investigações policiais, mas ressalvou que o órgão não vai atuar “sob pressão” e nem com “sentimento de vingança”. E ressalvou que eventuais provas de falsificação “são fatos paralelos que não têm relação direta” com o fato principal da ação, que é o homicídio das 242 vítimas do incêndio.
— Não temos compromissos com posições anteriores, seria infantilidade. As posições que tivemos foram relativas aos autos e provas que tivemos até então. Vamos avaliar (os inquéritos) com muita tranquilidade, com muita transparência, como se fez até agora. Se por acaso tiverem fatos novos, vamos avançar. Mas falsidade tem que ser tratada como falsidade. Parece que não há vínculo direto com os homicídios — disse.
O procurador reconheceu que as divergências com a Polícia são prejudiciais ao processo.
— Tentamos caminhar juntos até onde deu. As divergências só ajudam os eventuais responsáveis — lamentou.
Na Argentina, 15 acusados pelo massacre da boate Cromagnon, que causou a morte de 194 pessoas em Buenos Aires em dezembro de 2004, foram presos há dois anos – entre eles três funcionários públicos e um policial, condenados por corrupção. O então prefeito da cidade, Aníbal Ibarra, teve o mandato cassado, mas escapou das acusações de homicídio.
A associação Famílias por la Vida, que reúne os pais e mães das vítimas do incêndio, ainda luta para que mais cinco condenados em primeira instância no processo criminal cumpram pena. A Justiça continua analisando os recursos impetrados pelos advogados de defesa.
— Lá, como aqui, as licenças legais da boate estavam vencidas. O incêndio da Cromagnon foi fruto de corrupção e ganância, assim como ocorreu com a Kiss. Nós só teremos paz quando a justiça for completa – disse Nilda Gomez, presidente da associação.
A ONG faz campanhas publicitárias de prevenção e mantém um serviço telefônico que recebe denúncias de locais onde as normas legais de combate a incêndio não são respeitadas. Desde julho do ano passado a associação já recebeu 576 ligações, que foram encaminhadas para a Agência de Controle Comunal de Buenos Aires. O órgão governamental tem 48 horas para vistoriar o local e emitir um parecer oficial. Um terço das denúncias resultou em fechamento das casas noturnas.
— Metade das boates que são fechadas por falta grave reabre irregularmente porque não há fiscalização. E, quando há, os funcionários aceitam propina para não denunciar – lamentou Luiz Lizarraga, coordenador do serviço no ONG.
No sábado, durante o Congresso, houve também a primeira sessão pública do documentário “Janeiro 27”, com depoimentos de 15 pais, mães e sobreviventes sobre a tragédia da Kiss. O filme, dirigido por Luiz Alberto Cassol e Paulo Nascimento, foi aplaudido de pé pelas cerca de 200 pessoas que acompanharam a sessão.
— Foi muito doloroso de fazer. Mas (o filme) é necessário para que esse caso não caia no esquecimento, como estão tentando fazer. É um documentário absolutamente parcial, que valoriza o ponto de vista das vítimas. Não tem como ficar indiferente a isso – justificou Cassol.