quinta-feira, 3 de julho de 2014

PROFESSOR É QUASE LINCHADO, PRESO E TEM QUE PROVAR INOCÊNCIA

Do G1, em São Paulo 03/07/2014 07h35

Fã de Criolo e corrida, professor linchado quer limpar nome. André Luiz Ribeiro, 27, deu aula de Revolução Francesa para ser salvo. Em liberdade provisória, ele ainda tenta provar sua inocência à polícia.

Rosanne D'Agostino






O professor de história André Luiz Ribeiro, 27, sobreviveu a um linchamento na semana passada, em mais um das dezenas de casos relatados no Brasil neste ano. Foi salvo por uma breve aula sobre Revolução Francesa a um dos bombeiros que o resgataram.

André tem três paixões: dar aula, futebol e corrida. Esta última lhe rendeu 20 kg a menos em um ano, virou rotina diária. Ele corria no Balneário São José, a cerca de três quilômetros do bairro onde mora, quando percebeu que as pessoas começavam a se afastar dele.

Dos fones de ouvido, saía a canção 'Lion Man', do rapper Criolo. Era 25 de junho na periferia da Zona Sul da capital paulista.


Dois homens, o dono de um bar assaltado e seu filho, chegaram em um Fusca vermelho, desceram e começaram a espancá-lo. O homem dizia que André tinha assaltado seu bar.

O professor, que dá aula de História para cerca de 230 alunos em uma escola pública, estudou em escola pública, fez faculdade pública e sonha que seus alunos também "invadam" as universidades públicas do país.

Foi imobilizado, acorrentado e agredido, mesmo dizendo ser inocente e professor. Aos dois homens, somaram-se de 15 a 30 pessoas. Tentaram quebrar suas pernas.

O dono do bar mandou o filho buscar um facão. Foi quando os Bombeiros chegaram. Mas foi só de depois de explicar sobre a ascensão da burguesia a um bombeiro é que o levaram ao hospital. “Foi algo surreal. Só acreditamos quando chega próximo de nós. Aí você vê que é muito real mesmo, esse ódio das pessoas. Essa brutalidade do ser humano.”

Mesmo assim, foi preso e está em liberdade provisória, já que o dono do bar não retirou a queixa. O professor ficou detido por dois dias e só foi solto após decisão da Justiça. A polícia informa que continua investigando o caso. Agora, ele tenta provar que é inocente também no papel. “Eu estou bem melhor, mas a ferida na alma, a inocência, está perdida.”

Leia a seguir o relato de André sobre o dia em que foi vítima de um linchamento:

“Estava ali naquele bairro porque eu sou corredor. Faço ‘cooper’ todos os dias. É um local recorrente, tem pessoas que me conhecem. Passo sempre em frente a um DP ali. Estava noite, 19h30. Saí para correr.

Eu amo corrida. Eu estava bem pesado mesmo. Comecei a correr e fui vendo resultado. Fiquei fanático, fui querer correr mais, comprei tênis novo. Foi essa questão de peso. Estava com uns 20 kg a mais, perdi em um ano mais ou menos.
Eu falava em todo momento que eu era inocente, que era professor. Eu não tinha documento nenhum porque estava correndo, todo mundo me conhece ali perto. Mas já me bateram, me jogaram no chão."

Quando vi, as pessoas olhavam na minha direção, provavelmente porque foi a direção que os ladrões tomaram. Eu estava indo no sentido contrário. Com fone de ouvido. Nem achei que tinha acontecido um roubo. Nem sabia que era comigo.

Até onde eu lembro, eu ouvia Lion Man, do Criolo. Sou fã, gosto para caramba. O show dele já fui, é louco. Pelo fato de ele retratar as favelas, a realidade aqui. Também eu ouvi Facção Central, de rap, que tem uma causa social muito forte em pauta.

Aí eu vi as pessoas se afastando bruscamente. Foi quando eu vi um Fusca vermelho para me atropelar, vindo com muita velocidade. Pararam quase em cima de mim. Aí desceram do carro o dono do bar e o filho. E começaram a me bater.

Eu falava em todo momento que eu era inocente, que era professor. Eu não tinha documento nenhum porque estava correndo, todo mundo me conhece ali perto. Mas já me bateram, me jogaram no chão.

Os dois começaram. Só que veio a multidão. Foi de 15 a 30 pessoas que me bateram. Nem me perguntaram, nem olharam para os meus bolsos para ver se eu tinha alguma coisa. Eu não ia fugir, já pus as mãos para cima quando se aproximaram, mas tomei um soco na cara.
Mesmo se eu fosse um criminoso, não mereceria ser tratado assim."

Continuaram me batendo e, de repente, o dono do bar foi lá e pegou uma corrente e me acorrentou. Pegou meus braços e pernas, e eu com a barriga no chão, imobilizado.

Eu já tinha tomado muita pancada, cada um pegava uma parte, tentavam quebrar minha perna, batiam ela de cima para baixo. O dono do bar pediu para o filho dele ir buscar o facão.

Eu só queria me manter consciente para poder dizer: ‘olha a m... que vocês fizeram’. Em momento algum eu me desesperei. Eu estava com a minha consciência limpa, queria mostrar que não era eu.

Mesmo se eu fosse um criminoso, não mereceria ser tratado assim. Nós temos a Justiça para isso, se a pessoa fez alguma coisa errada. Lembrou muito o William Lynch [a quem é atribuída a origem dos linchamentos], que tinha um tribunal particular. Muito ‘olho por olho, dente por dente’. Foram momentos de terror mesmo.

Salvação

Minha sorte é que nesse momento os bombeiros me salvaram, únicos junto com a polícia que me defenderam. E logo em seguida, já apareceram os policiais. Solicitaram que me desacorrentassem. Me soltaram.

Ainda estava no chão, mas eles não acreditavam em mim. Eu disse que era professor, que estava ali por acaso. Aí um dos bombeiros falou para dar uma aula sobre Revolução Francesa. Foi o que me salvou.

Eu moro na periferia, poderia ter acontecido muitas coisas comigo. A gente sabe como é o cotidiano ali. O fato de ele ter me escutado já foi muito. Porque quando eu comecei a falar sobre a Revolução Francesa, acho que eles queriam uma prova para me ajudar, e conseguiram.
Ainda estava no chão, mas eles não acreditavam em mim. Eu disse que era professor, que estava ali por acaso. Aí um dos bombeiros falou para dar uma aula sobre Revolução Francesa. Foi o que me salvou."

Eu estava arregaçado, mas consciente. O raciocínio fica difícil, porque você fica em choque. Eu falei da ascensão burguesa ao primeiro escalão, que tinha poder econômico, mas não poder político, e de como a revolução mudou a forma como vivemos hoje.

Achei mesmo muito irônico esse ter sido o tema que ele perguntou, ali, naquele momento. Liberdade, igualdade, fraternidade. Falei sobre a queda da Bastilha. É um assunto que eu dou para 7ª série. Estava fresco na minha cabeça. Mas, mesmo assim, eu leio muito. Eu tenho conhecimento mínimo acerca da História.

Aí eles perceberam que eu era professor, me levantaram e me sentaram na calçada e prepararam para levar para o hospital, fazer curativo, tirar raio X. Eu ainda estou com um furo no meu tornozelo. O meu rosto ficou todo inchado, parecia que estava bem mais gordo.

Prisão
Fui preso. Um dos detentos que me viram perguntaram se minha cabeça era daquele tamanho mesmo.

Na primeira noite, eu nem dormi. Com medo. Só via o caso do corintiano que apanhou da torcida do Palmeiras. Eu lembro da cara dele e aí eu lembro de mim. Já lembrei desse caso também [de Fabiane Maria de Jesus, morta após ter sido confundida com uma suspeita de magia negra no Guarujá (SP)]. Podia ter sido meu destino.
Foi algo surreal. Só acreditamos quando chega próximo de nós. Aí você vê que é muito real mesmo, esse ódio das pessoas. Essa brutalidade do ser humano."

Minha foto do Facebook [reproduzida no início da reportagem] foi tirada dois dias depois de eu ter apanhado. Estava muito pior. Eu não vi se alguém filmou ou tirou foto do ocorrido.

Foi algo surreal. Só acreditamos quando chega próximo de nós. Aí você vê que é muito real mesmo, esse ódio das pessoas. Essa brutalidade do ser humano.

Só tinha visto algo desse tipo na televisão. Na periferia, o pessoal faz justiça e tal, bate, no caso, em pessoas que fazem uso de drogas.

Não que eu vá confiar menos, mas a gente fica muito mais receoso. Eu não levo holerite nem identidade. Provavelmente a partir de agora vou, porque minha mãe vai obrigar.

Futuro

Eu amo minha profissão. Tenho três paixões: dar aula, futebol e corrida. Antes eu queria ser advogado, olha a ironia. Eu adorava filme de tribunal, até meu avô falava. Mas o professor Alessandro, de história, mudou minha vida. Ele acreditou em mim. Pensei, eu também vou ser professor.

Ele dizia, que a gente da periferia, tem que se esforçar muito mais. Tudo conspira contra os mais pobres. É necessário que eles arregacem as mangas e vão à luta. Sempre estudei em escola pública, universidade púbica, e dou aula em escola pública. Quero que meus alunos invadam a universidade pública.


Hoje estou em liberdade provisória. Eu comecei a pensar que agora eu quero ficar livre, limpar meu nome. Eu sou uma vítima, inocente"

Nunca imaginei que eu ia ser preso um dia. Mas hoje eu tenho ferramenta para falar para os meus alunos. Eu tenho sete turmas, de 7ª e 8ª série. Mais ou menos 230 alunos. Lembro o nome de todos. Faço questão. Porque, quando você fala o nome, ganha respeito.

Se pudesse dizer algo, diria: vamos pensar um pouquinho mais. O ser humano é um único ser que tem o raciocínio, que tem um diferencial, mas que às vezes acaba não utilizando, acaba sendo talvez o mais irracional dos seres. Eu gostaria de ser um exemplo para as pessoas: Não é você que faz a justiça, a justiça está aí, vamos respeitar.

Hoje estou em liberdade provisória. Eu comecei a pensar que agora eu quero ficar livre, limpar meu nome. Eu sou uma vítima, inocente."

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