ZERO HORA 27 de dezembro de 2014 | N° 18025
HUMBERTO TREZZI JOSÉ LUÍS COSTA
ACIDENTE EM CAPÃO DECISÃO POLÊMICA
ALEGANDO
FALTA DE ATESTADO DE ÓBITO, juíza mandou libertar motorista que colidiu
com uma moto no Natal, no Litoral Norte. Ato desconsiderou outras
evidências, como testemunho de policiais e guia de recolhimento do corpo
da jovem morta. Outra vítima ficou gravemente ferida e está na UTI
Um
documento vale mais que a palavra de policiais e testemunhas de um
crime? Pela segunda vez em dois meses, os gaúchos deparam com essa
questão frente a polêmicas decisões da Justiça. Desta vez, foi em Capão
da Canoa, no Litoral Norte. Há dois meses, em Porto Alegre, um juiz
libertou um suspeito de estupro, preso por policiais, provocando também
grande controvérsia.
A juíza Lizandra dos Passos mandou
libertar Leonan dos Santos Franco, 30 anos, condutor da Ecosport que
matou Manoella da Silva Teixeira, 19 anos, na manhã de quinta-feira e
feriu gravemente a companheira dela, Franciéli da Silva Mello, 22. O
motivo do relaxamento da prisão foi comunicado no despacho judicial: a
morte não teria sido comprovada, pois a polícia não apresentou atestado
de óbito.
A juíza de Capão, ao libertar o preso,
ignorou testemunhas e policiais que atestaram a embriaguez de Franco. A
Ecosport que ele dirigia invadiu a pista contrária e atingiu a
motocicleta na qual estavam as duas jovens. O acidente ocorreu no
cruzamento da Avenida Paraguassú com a Rua Divisória.
Franco
se negou a fazer teste de bafômetro, mas foi indiciado por homicídio
doloso (quando há intenção de matar) e tentativa de homicídio. Ele
preferiu falar só em juízo, foi encaminhado à Penitenciária Modulada de
Osório e teve comunicada a prisão ao Judiciário.
O
expediente policial tinha os seguintes documentos: declarações de dois
policiais militares que atenderam à ocorrência, auto de prisão em
flagrante narrando a morte, guia de recolhimento do corpo por uma
funerária ao Departamento Médico Legal (DML) e ofício assinado pela
delegada plantonista Priscila Salgado, requisitando ao DML o auto de
necropsia.
Apesar da farta documentação, a juíza de
Capão não homologou a prisão do motorista. Enquanto Manoella era velada –
prova de sua morte –, Franco era solto. “No caso dos autos, verifico
que, como se cuida de homicídio, infração material que deixa vestígios, e
inexiste qualquer prova idônea que efetivamente demonstre a
materialidade do delito, já que a autoridade policial não acostou no
expediente o atestado de óbito da vítima, é inviável a homologação do
flagrante”, diz a decisão.
ARGUMENTOS PARA A PRISÃO
Inconformada
com a libertação do motorista, a delegada de polícia de Capão da Canoa
Walquíria Meder encaminhou à Justiça, ontem, atestado de óbito de
Manoella e cópias dos mesmos documentos anteriores, pedindo a prisão
preventiva de Franco.
– A juíza considerou que esses
documentos não serviram como prova da morte. Se a palavra do delegado e
dos policiais não é idônea, não temos o que comentar – desabafa
Walquíria.
O promotor de Justiça Sávio Vaz Fagundes, de
Capão, também protocolou um pedido de prisão preventiva. Ele discorda
da juíza e ressalta que, na maioria dos casos de homicídios, é decretada
prisão sem constar o auto de necropsia porque o documento demora alguns
dias.
– É necessário analisar outros elementos. Existe
a palavra dos policiais que ouviram dos socorristas que a jovem estava
morta. A prova testemunhal, nesse contexto, substitui o atestado de
óbito – afirma Fagundes.
A decisão da magistrada foi
defendida pelo presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul
(Ajuris), Eugênio Couto Terra, que considera a posição correta do ponto
de vista legal. Mesmo que sujeita a interpretações, como tudo no
Direito, ressalva ele:
– A juíza podia fazer o que fez,
pela ausência do atestado de óbito. O Código de Processo Penal
estabelece esse documento como fundamental. Ela considerou insuficientes
as provas testemunhais. Mas também poderia ter outra atitude: decretar a
prisão de ofício (por livre vontade). Agiu dentro da sua autonomia.
Entendo que haja clamor das pessoas em razão do fato, que sempre
consterna, mas a decisão foi absolutamente técnica.
Advogados
têm dúvida sobre a decisão da juíza. Ricardo Breier, integrante da
Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil,
acredita que a juíza tomou uma decisão excessivamente formal. Considera
que, diante do que leu a respeito, a prisão poderia ser decretada, até
para efeito pedagógico contra a impunidade de quem bebe e dirige.
A
juíza Lizandra dos Passos não quis falar a Zero Hora. Em decisão
divulgada ontem à noite, ela manteve Franco em liberdade argumentando
que ele não oferece risco à ordem pública e que o protesto da população
não justifica sua prisão. O motorista deverá entregar a carteira de
habilitação no fórum de Capão da Canoa.
Sobrevivente continua em estado muito grave
Franciéli
da Silva Mello, 22 anos, sobrevivente do acidente de trânsito que matou
a companheira dela, Manoella da Silva Teixeira, 19 anos, segue
internada em estado muito grave na Unidade de Tratamento Intensivo do
Hospital Santa Luzia, em Capão da Canoa.
Conforme Luís
Fernando Severino, padrasto da jovem, Franciéli foi operada assim que
deu entrada no hospital e ontem apresentou leves sinais de melhora.
–
Ela murmurou que sente dor nas pernas. O que é um bom sinal. O nosso
grande temor é que perdesse os movimentos inferiores porque quebrou a
bacia e o fêmur de uma das pernas. Ela está se recuperando, mas sabemos
que vai demorar. O médico disse para a gente rezar muito e entregar nas
mãos de Deus – disse Severino.
Por causa da gravidade
do caso, a família pensou em transferir a jovem para um hospital de
Porto Alegre ou de Torres, mas desistiu, pois não haveria vagas e a
remoção seria arriscada. Franciéli poderia não resistir à viagem.
Ao
saber da soltura de Leonan dos Santos Franco, decidida pela Justiça, o
motorista da Ecosport que bateu na motocicleta das jovens, Severino fez
um desabafo:
– Estamos indignados. Queremos Justiça. Ele matou uma pessoa e deixou outra em estado muito grave.
Manoella
e Franciéli eram companheiras havia dois anos e também colegas de
trabalho em um restaurante. Na manhã do Natal, as duas seguiam para o
serviço em uma motocicleta, dirigida por Manoella, quando a Ecosport de
Franco avançou pela pista contrária e colidiu com a moto. Manoella
morreu instantes depois. O corpo da jovem foi sepultado no final da
manhã de ontem, no cemitério municipal de Capão da Canoa.
O QUE DIZ A LEI |
Trechos do Código de Processo Penal |
-Art.
158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de
corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do
acusado. |
-Art. 159. O exame de
corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial,
portador de diploma de curso superior. (Redação dada pela Lei nº 11.690,
de 2008) |