Revista Consultor Jurídico, 18 de outubro de 2012
CRÍTICAS IGNORADAS. Formalismo, democracia e cinismo na reforma penal
Por Alaor Leite
“Engenheiros de obra pronta.” Assim se referiu Técio Lins e Silva, integrante da comissão de juristas que se dispôs a reformar o Código Penal brasileiro no prazo de sete meses, aos críticos deste mais novo movimento reformador[1]. A expressão é infeliz, ainda que não na mesma medida em que o é o projeto (PLS 236/2012). Os integrantes da comissão podem e devem defender o seu trabalho. Afinal, assinaram-no. A expressão é infeliz, porque errada. Fosse, por exemplo, o Projeto 236 uma obra de engenharia, já teria vindo abaixo, não em razão das pedras atiradas pela crítica científica, mas pela fragilidade do próprio alicerce. Se obra fosse, haveria no alicerce areia da praia ao invés de cimento. Tampouco pronta está a obra, pois, até que se negue vigência à Constituição da República, o Projeto 236 possui um longo caminho a trilhar em seu trâmite legislativo[2]. Sequer no Senado Federal, que requereu a instalação da comissão, o projeto foi votado.
Mas a infelicidade da expressão revela mais um traço deste movimento reformador: a nova postura do legislador em relação à ciência. O projeto se crê inovador, marco zero do Direito Penal, arauto de tudo que há de mais novo, a ponto de ignorar as reformas passadas e a ciência jurídica[3]. O projeto, ao contrário do que afirma a comissão de juristas que o elaborou, não é fruto de uma opção científica em detrimento de outra, mas retrato da ausência completa da ciência no processo de elaboração das leis. Não bastasse essa atitude, a crítica científica realizada ex post, isto é, após a publicação do projeto, é solenemente ignorada. Neste trabalho, quero chamar a atenção para as inovações ligadas não à técnica utilizada[4], mas à postura apresentada pelos integrantes da comissão durante o movimento reformador.
O apologeta e o voto vencido
Há, essencialmente, duas posturas assumidas pelos integrantes da comissão. De um lado, os apologetas, que, a despeito das graves falhas do Projeto 236, o defendem com vigor. Postura igualmente legítima, ela é ademais corajosa, verdadeiro ato de bravura e renitência. Essa é a postura do relator da comissão, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, que tem vindo a público com relativa frequência.
A segunda postura é, ao contrário, lamentável. Há os que, cônscios do resultado e da má aceitação científica do Projeto 236, anunciam-se como os votos vencidos da comissão, os abnegados que, embora tenham se esforçado, foram derrotados por forças vindas sabe-se lá de onde. Corifeus da resistência. Com um detalhe: não abrem mão da assinatura ao final do projeto. Essa foi a postura manifestada, por exemplo, por Luiz Flavio Gomes, em manifestação pública realizada durante o 18oSeminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais[5]. Há que se entrar na história, mas com uma espécie de escusa geral: “O que há de errado, adianto, não foi obra minha; fui voto vencido.” Como o combatente que, nunca tendo estado em uma troca de tiros, exige as mesmas honrarias militares dos que nela estiveram. Há tantos votos vencidos na comissão, que parece ser um instigante mistério desvendar quem aprovou os equívocos. Talvez ninguém.
Aníbal Bruno, por discordar dos rumos fundamentais da comissão Hungria instaurada em 1961, pediu que seu nome fosse retirado dos documentos oficiais[6]. Também Nilo Batista optou por essa postura em outra oportunidade mais recente[7]. Assinar linhas nas quais não é possível se reconhecer soa escandaloso a qualquer jurista sério. Pois a presente comissão inaugura não apenas nos equívocos técnicos já amplamente denunciados[8], mas também na postura. Ao que parece, passa a ser possível assinar um documento ainda que não se concorde com pontos essenciais dele constantes. Refiro-me a pontos essenciais, não a discordâncias pontuais. Melhor é a postura séria, transparente e responsável — no sentido de que responde pelos méritos e defeitos —, por exemplo, do relator da comissão, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, do que a flexibilidade invulgar dos legisladores de ocasião, que anseiam, ao mesmo tempo, a glória de legislar e a admiração da ciência. Ninguém exige unanimidade em um Projeto de Código Penal. Ao contrário. Mas assinado o projeto, tampouco há espaço para desincumbir-se da responsabilidade. Ou se assina, ou não[9]. Tertium non datur. O militar da metáfora acima mencionada seria, sem dúvida, taxado de covarde pelos colegas.
A relação da comissão com a crítica científica é, nesse ponto, estranha e preocupante. Um espetáculo degradante, em que o legislador debocha da ciência[10]. Talvez alguns membros da comissão não gostem das críticas, ou do tom das críticas, ou mesmo daqueles que as formularam. Se o crítico é jovem jurista, “não possui autoridade para criticar”. Se é jurista consagrado, “está com ciúmes, alimentava o desejo de participar da comissão”. Se não for nem um, nem outro, “deveria ter criticado antes”. Se não criticar, “omitiu-se de seu mister democrático”. Até aqui, nada novo[11]. Também a crítica científica não gostou do Projeto 236, do tom da Exposição de Motivos, ou da escolha de alguns integrantes da comissão, cujas canetas, que escreveram pela primeira vez sobre Direito Penal, produzirão palavras que hão de vigorar erga omnes e sustentar prisões. São dois os pontos que chamam verdadeiramente a atenção: o formalismo e a democracia cínica da comissão.
Formalismo como resposta ao açodamento
Sete meses. É o prazo regimental para as comissões legislativas instauradas no Senado Federal. “Estamos obedecendo ao regimento interno”, “o açodamento, não fomos nós que o determinamos”, “somos apenas fiéis cumpridores do que estabelece o regimento”. Essa é a atitude formalista da comissão. Impossível não lembrar do célebre artigo de Radbruch, publicado em 1946, em que o autor defendeu a tese de que os juristas da época do nacional-socialismo eram reféns das leis, e estavam desarmados juridicamente na luta contra as atrocidades do nacional-socialismo. Lei é lei[12].
Regimento é regimento. A comissão, em seu afã por obediência, crê poder alterar toda a legislação penal de um país, mas não se crê capaz de explicar ao Senado Federal uma obviedade, a de que reformar e consolidar toda a vasta e complexa legislação penal de um país em sete meses é atividade temerária, que demanda um prazo excepcional. Provavelmente o Senado, disposto a colocar em votação a maior alteração legislativa dos últimos tempos, não quisesse, via um mero ato normativo interno, conceder prazo maior a essa comissão. Mais uma novidade deste movimento reformador: há cláusulas pétreas no regimento interno do Senado Federal. A pressa existe e, para não maltratar a ingenuidade alheia, seria interessante que o verdadeiro motivo — aquele que se esconde por trás do regimento — da carreira vertiginosa do projeto viesse a público[13].
Democracia e cinismo
Já foi dito, mas parece necessário repetir: a ciência não foi convidada para a elaboração do Projeto 236[14]. A crítica científica não se ressente da ausência de convite, pois não se constrange em entrar como intrusa em uma festa cuja temática é a criação de crimes e a cominação de penas. Antes sente-se compelida a fazê-lo. Legisladores legislam; crítica científica critica. A comissão clama por sugestões. O que é a crítica científica, artigo por artigo da matéria relativa à teoria do delito no Projeto 236 (art. 1o a 44), se não uma espécie de sugestão? Talvez a comissão interprete restritivamente o termo “sugestão”, e inove vez mais, agora em nosso vernáculo: sugestão possuiria apenas conteúdo positivo. De toda a forma, a crítica técnica e criteriosa já foi realizada, embora permaneça sem resposta. Enquanto não houver resposta, é ardiloso o clamor da comissão por sugestões[15].
Em forma de depoimento pessoal, estive em evento na Universidade Federal do Paraná, no final do mês de março deste ano, oportunidade na qual foi apresentada pelo então relator da parte geral, René Dotti, uma outra parte geral, que não a apresentada no relatório final da comissão. A redação dos artigos era outra, as preocupações eram outras[16]. Ou seja: após a eloquente saída voluntária do então relator, elaborou-se nova parte geral, não mais em sete meses, mas em quatro. Naquela oportunidade, várias críticas foram realizadas e apresentadas formalmente a René Dotti. Também não encontro no sítio oficial do Senado Federal os anais das discussões, de que fala Técio Lins e Silva na entrevista já citada. Pode ser que eles existam. Mas nenhum penalista os possui. O Projeto 236 é obra de fancaria jurídica, cirurgia arriscada realizadas às escuras por mãos atabalhoadas. Se queriam entrar para a história, irão.
A postura democrática da comissão é a seguinte: as críticas são “legítimas e naturais”[17], mas ignoradas. Porque a comissão de reforma vende o processo de elaboração como uma aula magna de democracia. O “Alô Senado” recebeu várias sugestões, e isso conferiria legitimidade democrática à comissão. Durante a gestação do projeto, os membros da comissão insistiam em se manifestar sobre os temas polêmicos, pautando a mídia, em inversão incrível de papéis[18]. A mídia, sentada na antessala vip do Senado Federal, aguardava ansiosa os primeiros rabiscos da comissão. Os temas polêmicos, como aborto, eutanásia, maus tratos aos animais, descriminalização das drogas foram noticiados à exaustão. Por coincidência, estes temas polêmicos foram os únicos a que fez referência o presidente do Senado, José Sarney, manifestando-se contrário às alterações propostas[19], prenunciando algo incrível: os temas noticiados amplamente, e, portanto, de conhecimento geral da população e dos juristas, permaneceriam como estão; os não noticiados, como as viscerais mudanças na parte geral, seriam aprovados, na medida em que sobre questões técnicas, as Casas do Congresso Nacional teriam pouco a objetar. A parte geral de um Código Penal é assunto técnico, a ser debatido de forma lúcida e refletida, para que apenas depois seja apresentado ao Congresso Nacional para que este exerça sua missão constitucional. A humildade da comissão poderia ser demonstrada ao se abster em alterar ao menos a parte geral de nosso Código.
Essa é a democracia cínica da comissão, a sua esnobe humildade, mais uma das novidades introduzidas. Aceitam as críticas; depois de extinta a comissão. Exaltam a existência das críticas como parte do jogo democrático; mas não as respondem. É sempre bom desconfiar de uma humildade que precisa sair fantasiada às ruas para afirmar que existe.
[1] Em entrevista acessível em: http://www.conjur.com.br/2012-out-10/tecio-lins-silva-rebate-criticas-anteprojeto-codigo-penal (acessado em 17.10.2012). O vídeo com a entrevista completa pode ser acessado em http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI165431,21048-Tecio+Lins+e+Silva+anteprojeto+do+novo+CP+nao+contempla+a+unanimidade (acessado em 18.10.2012). Aconselho ao leitor a contemplação do vídeo, cujo conteúdo revela por si a postura da comissão.
[2] Como corretamente afirmam outros integrantes da comissão, Santos Gonçalves/Gomes/Eluf,Democracia e Código Penal, in: Folha de São Paulo, Tendências e Debates, 17.10.2012, acessível em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1170305-tendenciasdebates-democracia-e-codigo-penal.shtml (acessado em 17.10.2012).
[3] Referências completas em A. Leite, Erro, causas de justificação e causas de exculpação no novo Projeto de Código Penal (Projeto de Lei 236/20120 do Senado Federal), Revista Liberdades Especial – Reforma do Código Penal, 2012, p. 59 e ss., acessível em http://www.ibccrim.org.br/site/revistaLiberdades/_pdf/10A/artigo3.pdf
[4] Ver a critica detalhada e técnica no número especial da Revista Liberdades, acessível em http://www.ibccrim.org.br/site/revistaLiberdades/_pdf/10A/integra.pdf
[5] Manifestação de Luis Flavio Gomes que pode ser vista nos seguintes links:http://www.youtube.com/watch?v=7tIQplUlma8 ; http://www.youtube.com/watch?v=9uxv1Qo1dpg&feature=relmfu e http://www.youtube.com/watch?v=S26VkZ2BU30 (acessados em 17.10.2012).
[6] Como noticia Fragoso, Subsídios para a história do novo Código Penal, publicado originariamente em Revista de Direito Penal, n. 03, p. 7 e ss. e acessível atualmente em:http://www.fragoso.com.br/eng/arq_pdf/heleno_artigos/arquivo67.pdf (acessado em 17.10.2012).
[7] Batista,Prezada senhora Viegas: o anteprojeto de reforma no sistema de penas, in. Discursos sediciosos, n. 9-10, 2000, p. 107 e ss.
[8] Na já mencionada Revista Liberdades especialmente dedicada à reforma (cf. nota 4).
[9] Nessa medida é que é interessante a proposta de Salo de Carvalho, O papel dos atores do Sistema Penal na era do punitivismo, Rio de Janeiro, 2010, p. 262 e ss., de uma lei de responsabilidade político-criminal, que preveja, entre outras coisas, estudos prévios dos impactos concretos das novas leis penais.
[10] Relembro ao leitor a entrevista de Técio Lins e Silva: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI165431,21048-Tecio+Lins+e+Silva+anteprojeto+do+novo+CP+nao+contempla+a+unanimidade.
[11] Sobre a retórica da comissão ver Greco, O Projeto de Lei do Código Penal e sua retórica, 14.10.2012, acessível em: http://www.conjur.com.br/2012-set-14/luis-greco-projeto-lei-codigo-penal-retorica (acessado em 17.10.2012).
[12] Radbruch, Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht, in: Süddeutsche Juristenzeitung 1946, p. 105 e ss.
[13] Enfatizaram esse ponto igualmente Reale Júnior/Mello Silveira/Livianu/Bartoletti, Por um Código Penal democrático, in: Folha de São Paulo, tendência e Debates, 04.10.2012, acessível em:http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1163516-tendenciasdebates-por-um-codigo-penal-democratico.shtml (acessado em 17.10.2012). Ninguém está pedindo mais 24 anos, como faz crer a entrevista concedida pela relator da comissão, acessível emhttp://www.gazetamaringa.com.br/online/conteudo.phtml?tl=1&id=1307788&tit=Nao-podemos-mais-esperar-24-anos-diz-relator-da-CP (acessado em 18.10.2012). Perceba-se que mais de cem outros Projetos de Lei foram anexados ao Projeto n. 236/2012, conforme o sitio do Senado:http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2012/08/31/mais-de-cem-projetos-foram-anexados-a-proposta-de-reforma-do-codigo-penal (acessado em 18.10.2012).
[14] A. Leite, Erro, causas de justificação e causas de exculpação no novo Projeto de Código Penal (Projeto de Lei 236/20120 do Senado Federal), Revista Liberdades Especial – Reforma do Código Penal, 2012, p. 59 e ss.
[15] Um ofício do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) logo foi interpretado como uma “sugestão”, quando na verdade era uma reafirmação do posicionamento contrário à reforma desta instituição, causando mal-entendido desfeito posteriormente por nota oficial do IBCCrim acessível em:http://www.ibccrim.org.br/site/noticias/conteudo.php?not_id=14093 (acessado em 17.10.2012).
[16] Basta observar a regulamentação contraria à responsabilidade penal da pessoa jurídica propagada defendida pelo então relator da parte geral, René Dotti com a regulamentação favorável a essa forma de responsabilização constante do texto final do Projeto n. 236/2012. A esse respeito verBusato, Responsabilidade penal de pessoas jurídicas no Projeto do novo Código Penal brasileiro, Revista Liberdades Especial – Reforma do Código Penal, 2012, p. 98 e ss., acessível em:http://www.ibccrim.org.br/site/revistaLiberdades/_pdf/10A/integra.pdf (acessado em 17.10.2012).
[17] Assim afirmam os integrantes da comissão, Santos Gonçalves/Gomes/Eluf, Democracia e Código Penal, in: Folha de São Paulo, Tendências e Debates, 17.10.2012, acessível em:http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1170305-tendenciasdebates-democracia-e-codigo-penal.shtml(acessado em 17.10.2012).
[18] A comissão permanece focada nesses assuntos, como comprova a recente entrevista de Luiz Flavio Gomes: http://globotv.globo.com/rede-globo/bom-dia-pe/v/reforma-do-codigo-penal-brasileiro-e-discutido-em-encontro-no-recife/2071808/ (acessado em 17.10.2012)
[19] Manifestação de José Sarney, in: Justificação do Projeto de Lei 236/2012, p. 196 e ss., acessível no sítio oficial do Senado Federal (http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=111516&tp=1), a que fiz referência em A. Leite, Erro, causas de justificação e causas de exculpação no novo Projeto de Código Penal (Projeto de Lei 236/20120 do Senado Federal), Revista Liberdades Especial – Reforma do código Penal, 2012, p. 61, nota 6.
Alaor Leite é mestre e doutorando em Direito pela Universidade Ludwig Maximilian, de Munique.
O Brasil precisa construir um SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL harmônico integrando Poderes e Instituições, independente tecnicamente, com ligações próximas, processos ágeis, competências definidas e capaz de assegurar a ordem pública, executar e garantir a aplicação coativa das leis, cumprir os objetivos da execução penal e promover a paz social, zelando pelos recursos públicos e garantindo a supremacia do interesse público em que vida, saúde, patrimônio e bem estar das pessoas são prioridades.
quarta-feira, 26 de dezembro de 2012
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