quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A CONTRADITÓRIA LÓGICA DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Juliana Vinuto é assistente de Projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. CARTA CAPITAL, 19.05.2011 09:09

O Conselho Nacional do Ministério Público divulgou o “Inqueritômetro”, um sistema de acompanhamento dos inquéritos sobre homicídios iniciados até 31 de dezembro de 2007 e que ainda estejam sem solução. Em todo o país são 151,8 mil investigações sem identificação do autor do crime, sem considerar os inquéritos anteriores a maio de 1991, que são automaticamente arquivados. Os estados com maiores números de investigações de assassinatos não solucionadas são Rio de Janeiro com 60 mil inquéritos, Minas Gerais com 20 mil e Espírito Santo com cerca de 14 mil.

São diversas as razões para números tão altos de homicídios sem solução: falta de estrutura das polícias civis, método defasado com foco na confissão, dificuldades na produção de provas pela perícia, processos não integrados na tramitação de casos, déficit do número de investigadores, interferência política na polícia, dentre diversos outros motivos. Lembrando que isso ocorre em tempos de queda nos índices de criminalidade, com Rio de Janeiro e São Paulo liderando constantes diminuições no número de homicídios. Isso demonstra que a pressão e a quantidade de trabalho de outrora não são mais justificativas isoladas para tal cenário, o que facilita a tramitação dos casos e pode agilizar a resolução desses inquéritos sem solução.

Nesse quadro é possível notar que enquanto temos números tão altos de homicídios sem solução, também são altos os números de presos provisórios, ou seja, aqueles que estão presos preventivamente, mas que não foram julgados, portanto, não necessariamente culpados. De acordo com dados do Anuário 2010 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 45% da população encarcerada está sem julgamento.
Aqui nota-se como o sistema de justiça criminal brasileiro funciona de forma contraditória, dado que a necessidade de provas não se impõe a todos os casos: enquanto alguns poderiam estar presos e não o são devido à falta de provas, outros aumentam o número da população encarcerada sem necessidade dessas mesmas provas.

Pode-se verificar que o pensamento punitivo da sociedade brasileira mostra-se sutilmente ambíguo: Enquanto vemos diversos projetos de lei e formadores de opinião ansiando por políticas de “tolerância zero”, pouco se fala sobre a forma como gerenciar todo este processo, aprofundando o contexto de “modernização seletiva”, para usar as palavras de Jessé de Souza. Isso só demonstra que as palavras de ordem de cunho conservador não resolvem o problema, sendo necessária a criação de diversos indicadores para a identificação dos problemas que historicamente dificultaram a conclusão das investigações de homicídios e de outras questões que perpassam a problemática.

Sem o estudo aprofundado do tema, as forças de segurança pública tornam-se reféns de uma lógica que as reduz em meros instrumentos dos interesses do Estado e de uma elite que consegue determinar suas agendas. Boris Fausto já defendia que entre 1880 a 1924, período em que foca a análise em um de seus livros, as elites acreditavam que a lei e a ordem eram poderosos requisitos para o desenvolvimento econômico, e que isso pautava os investimentos em segurança e modos de punição. Ou seja, este não é um novo tema para o debate, mas que, infelizmente, continua sem solução.

Por esse motivo, é louvável a iniciativa do Conselho Nacional do Ministério Público, que ajuda a aprofundar a questão e pode influenciar outras iniciativas do gênero. Mais do que qualquer outra ação, o investimento massivo em políticas de redução de homicídios pode significar a necessária inflexão do modelo de segurança pública e justiça criminal brasileiro, priorizando direitos e vidas. O foco na redução de homicídios pode, inclusive, fazer avançar o debate acerca dos gargalos que tornam a área de segurança pública no país uma das menos eficientes e pouco transparentes. Não à toa, São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, para citar alguns dos principais exemplos, aliam redução de homicídios à publicação regular de dados.

JUÍZES ELOGIAM RAPIDEZ E EFICIÊNCIA DA JUSTIÇA CRIMINAL DO CHILE

Manuel Carlos Montenegro, Agência CNJ de Notícias, 09/06/2011 - 18h02


Os alunos do curso “Visita ao sistema de justiça criminal chileno”, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Centro de Estudos de Justiça das Américas (CEJA) desde segunda-feira (6/6), em Santiago/Chile, aprovaram a experiência ao final das atividades na última quarta-feira (8/6). Mereceram elogios tanto a oportunidade de conhecer de perto a reforma do sistema processual penal chileno como a rapidez e eficiência processual do sistema. Um dos alunos do curso, o juiz federal da 12ª Vara Federal (Brasília) Marcus Vinicius Bastos elogiou a rapidez gerada pela oralidade, característica da reforma processual chilena, implantada no país latino-americano entre 2000 e 2005. “Diferente do processo no Brasil, que tem muitas formalidades e trata mais da forma do que do conteúdo, o sistema chileno vai direto ao cerne da questão. Isso é agir de forma mais econômica e eficiente”, afirma Bastos.

Sua colega e juíza da Vara de Execuções Penais do Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul, Adriana Ribeiro, citou resultados apresentados pelos representantes do Judiciário chileno para ilustrar a eficiência do processo. “Da implantação da reforma até hoje, caíram o número de prisões preventivas e o tempo médio dos processos, enquanto aumentou a quantidade de condenações”, diz.

No último dia do curso, os alunos presenciaram um julgamento criminal de primeiro grau, no Tribunal de Juízo Oral, em Santiago. No Chile, essa etapa é realizada por um colegiado de três magistrados. Da decisão do colegiado não cabe recurso, a menos que seja por causa de uma irregularidade no processo. “O processo é todo feito oralmente, à exceção da sentença, que é escrita”, explica o conselheiro Walter Nunes da Silva Junior, que representou o Conselho ao lado do conselheiro José Adonis Callou de Araújo Sá e do juiz auxiliar da Presidência Luciano Losekann.

A informatização e a gravação dos processos tornam a tramitação dos processos muito mais rápida. “No Brasil, é possível recorrer várias vezes aos órgãos fracionados dos tribunais”, afirma Walter Nunes, que apresentou a reforma do processo penal brasileiro a juízes chilenos no último dia do curso. A exposição ocorreu na sede do Centro de Estudos de Justiça das Américas (Ceja), na capital chilena. “Os magistrados chilenos demonstraram interesse em conhecer o sistema de justiça criminal brasileiro e o CNJ”, afirma.

Intercâmbio – Durante três dias, um grupo de 11 magistrados brasileiros e os três representantes do CNJ conheceram de perto a reforma do sistema processual penal chileno, referência na América Latina. Além de assistirem a aulas teóricas, ministradas por juízes chilenos, os brasileiros visitaram instâncias do judiciário e do executivo que lidam com o tema. Estiveram no Centro de Controle de Detenção e Observação de Audiências, no Juizado de Garantia, na Procuradoria Regional e na Defensoria Penal Pública Regional.

A CAPACIDADE PREVENTICA DO SJC BRASILEIRO

A CAPACIDADE PREVENTIVA DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO: A INTERFACE ENTRE O DIREITO PENAL E ABORDAGENS CRIMINOLÓGICAS - Daniel Gustavo Gonçalves Caetano e Frederico de Carvalho Figueiredo


PALAVRAS-CHAVE: Sistema de justiça criminal, prevenção, segurança pública, nível microssocial, nível macrossocial.

1 INTRODUÇÃO

O tema da segurança pública é um dos assuntos de maior importância quando se pensa na atuação do Estado perante a sociedade. Junto a fatores como saúde, educação e emprego, a segurança pública é um indicador da qualidade de vida dos cidadãos.

Nesse aspecto, o Direito Penal, amparado pelo Sistema de Justiça Criminal, ocupa posição de destaque quando se trata, não só da punição, mas da prevenção da criminalidade, já que, para proteger um bem jurídico, é preciso evitar que ele seja lesado. Contudo, embora alguns doutrinadores das ciências jurídicas possam relegar à pena a função de preventiva do Direito Penal, há inúmeras controvérsias a respeito dos reais fins da pena.

Por outro lado, uma sólida política de segurança pública deve ser formulada com base em dados fornecidos principalmente pelo Sistema de Justiça Criminal, o que possibilitará o entendimento das causas da violência e, como corolário, a aplicação de medidas mais adequadas ao caso brasileiro. Não há como fundamentar uma medida de segurança e decidir sobre uma abordagem estatal sem informações sobre os tipos de crimes mais freqüentes, as localidades em que ocorrem, quem são as principais vítimas, quem são os principais infratores, dentre outras.

No entanto, a mera persecução das causas da violência pode não conduzir a um resultado eficiente, pois o crime é um fenômeno social complexo, que pode ser determinado por uma quantidade de fatores sociais, culturais, econômicos ou de caráter interno do indivíduo. Nesse sentido, a adoção de paradigmas de análise micro ou macrossociais possibilitam a determinação de uma unidade de estudo, norteando que tipo de investigação deve ser feito para lastrear as políticas públicas de segurança.

Através desses paradigmas, o Sistema de Justiça tem a possibilidade de atuar preventivamente, seja focando causas ambientais ou socioeconômicas, seja agindo caso a caso na determinação de penas e medidas de reinserção que evitem e reincidência. Entretanto, suas possibilidades são reduzidas pelo modo de operar dos órgãos que o compõem, pois além de defasagens técnicas, o viés tomado pela legislação penal determina uma atuação microssocial, voltada para o tratamento individual de cada crime.

Assim, pode-se dizer que o objetivo geral desse artigo é examinar em que medida se instaura a capacidade preventiva do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro, se consideradas as causas do crime. Dessa forma, seus objetivos específicos são:

• Demonstrar como se estrutura o Sistema de Justiça Criminal no Brasil e quais são suas funções;

• Identificar sob quais paradigmas se torna possível a análise das causas da criminalidade;

• Listar as teorias a respeito das causas da violência;

• Analisar o paradigma atualmente utilizado pelo sistema criminal para tratar as ocorrências criminais;

• Avaliar a atuação atual e real do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro;

• Analisar, a partir do cumprimento dos objetivos supracitados, a capacidade preventiva do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro.

2 A ESTRUTURAÇÃO DA JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRA

Para atender as demandas sociais, o ordenamento jurídico brasileiro é dividido em vários micro-sistemas normativos, determinados em razão da matéria que disciplinam. Por isso existem diferentes searas de atuação do Direito, como Civil, Trabalhista e Penal. Este último é composto por normas impostas pelo Estado mediante coerção, a fim de manter a paz social. Cabe ao Direito Penal, portanto, a definição crimes, a imposição de sanções ou medidas de segurança. Sua atuação, entretanto, está condicionada à atuação de uma série de organizações e órgãos, chamados, em conjunto, de Sistema de Justiça Criminal.

A partir da Constituição Federal de 1988, o modelo de justiça Criminal passou a ser dividido em duas fases distintas: fase administrativa e fase judicial. A primeira, também chamada extrajudicial, tem início, de acordo com Sapori (2007), no trabalho ostensivo da polícia uniformizada, que tem a finalidade de impedir a prática de crimes e delitos. Como muitas vezes seu trabalho falha em sentido preventivo, cabe ao Estado o dever de identificar o autor do ilícito para sua submetê-lo ao poder judiciário.

Essa tarefa de investigação é feita através do Inquérito Policial, que é presidido pelo Delegado de Polícia com a finalidade de gerenciar esta produção investigativa, pautada na legislação em vigor. Estando o inquérito policial pronto, o investigado é indiciado formalmente e os resultados do inquérito são remetidos à “Justiça” (SAPORI, 2007).

No Poder Judiciário inicia-se a segunda fase, denominada judicial, em que a vítima, seu representante legal ou o Ministério Público podem promover a ação penal contra o indiciado. Para Sapori (2007), cabe ao Juíz, então, decidir pela absolvição ou condenação do acusado, conforme prova dos autos. Nessa fase também aparece a figura da Defensoria Pública, cuja função é garantir a ampla defesa do indiciado. Há que se citar, ainda o sistema prisional, utilizado em caso de condenação a penas de reclusão ou detenção.

O Sistema de Justiça criminal é, portanto, o meio pelo qual o Direito Penal exerce suas prerrogativas básicas de proteção aos valores fundamentais para a subsistência social, os chamados “bens jurídicos”, tais como a vida, a saúde e o patrimônio.

Conforme Capéz (2006), essas prerrogativas são exercidas pela intimidação coletiva, que utiliza do temor ao risco da sanção penal como instrumento de prevenção e, sobretudo, pelo cumprimento dos compromissos éticos entre o indivíduo e o Estado, gerando, assim, o respeito às normas jurídicas em razão de uma convicção da sua necessidade e justiça, e não somente pelo receio de punição.

Quando o ordenamento jurídico prescreve uma sanção à violação de deveres ético-sociais, induz a formação de um juízo ético dos cidadãos, delineando os valores essenciais ao convívio social. Assim, sempre que um bem jurídico é lesado e o sistema de justiça trata de efetivar a sanção prevista para a transgressão existente no caso concreto, mostra à coletividade em que medida valoriza o interesse que foi violado. Da mesma forma, afirma Capéz (2006), quando o poder judiciário é lento, omisso ou injusto, incute na consciência comunitária a irrelevância de valores éticos e sociais, conduzindo a um descrédito da justiça criminal e propiciando o desrespeito a tais valores.

Neste último caso, o indivíduo tende a descumprimento da lei penal, independente de seu recrudescimento. Assim, o que poderia ser um dever ético e absoluto torna-se relativo a cada caso concreto, e a ineficiência da justiça criminal torna-se um meio propagador da pouca solidez de deveres sociais elementares, reduzindo a importância de certos valores éticos. Interpretando Welzel (1997), o direito penal, na medida em que tutela bens jurídicos concretamente, como proteção individual à pessoa ou à sua propriedade, deixa de assegurar a real observância de valores coletivos fundamentais à manutenção da segurança social.

3 A PREVENÇÃO NO DIREITO PENAL

Em sentido mais amplo, também seria um dos objetos de ação da justiça criminal a aplicação de políticas de segurança pública, especialmente no que tange as polícias militar e civil, para então, obter atuação preventiva em relação à criminalidade. Por outro lado, a atuação preventiva é determinada por meio de diretrizes definidas pelo Direito Penal, já que, como diria Welzel (1997), a função primordial deste ramo do Direito é de natureza ético-social e de caráter positivo.

3.1 Dos fins da pena

Tratando do caráter preventivo do Direito Penal, discute-se a respeito das funções da pena, já que parte da doutrina identifica como uma de suas prerrogativas a capacidade educativa e conseqüentemente preventiva. Entretanto, há diversas teorias sobre os fins da pena, e sua função não é definida sem controvérsias.

De acordo com as chamadas teorias absolutas, a pena tem um caráter retributivo e expiatório. Seus principais defensores, Kant e Hegel, deram, respectivamente, funções de ordem ética e de ordem jurídica à pena. Nas palavras de Bitencourt (1999), “segundo o esquema retribucionista, é atribuída à pena, exclusivamente, a difícil incumbência de realizar a Justiça. A pena tem como fim fazer Justiça, nada mais.” Dessa forma, por ser portador de um livre arbítrio, a culpa do autor de um crime deve ser compensada pela imposição de um mal, traduzido na figura da pena.

Tal teoria, contudo, foi duramente criticada, sendo um de seus mais célebres críticos Claus Roxin. Para o jusfilósofo, se o significado da pena assenta na culpa humana, esta não pode ser compensada somente pelo Estado, pois se manifesta de diferentes formas que não somente a jurídica. E, tratando-se da culpa jurídica, há que se considerar que sua existência gera diferentes conseqüências que não só a pena, como o dever de indenizar, por exemplo. Além disso, não racionalmente plausível pagar um mal cometido acrescentando-lhe um segundo mal, o que aproxima a pena da vingança privada, somente presente e aceita em atos de fé, e não cientificamente (ROXIN, 1986).

Por outro lado, nas teorias de prevenção geral, em que se destacam doutrinadores como Beccaria e Schopenhauer, a ameaça da pena cria uma intimidação geral de todos os membros da comunidade jurídica. Roxin (1986) novamente contradiz tal teoria, já que, para ele, entre várias objeções, a pretensão de intimidar usando-se da pena deve ser acompanhada do reforço de sua aplicação, que deve ser tão dura quanto possível. E, ainda que a pena tenha aplicação justa e rápida, não se explica a ineficácia da intimidação em certos grupos de crimes e de delinqüentes.

Já as teorias de prevenção especial, postuladas da moderna política criminal, a prevenção do delito é tratada por meio da atuação sobre o autor. Em outras palavras, por meio da atuação exclusiva sobre o criminoso, busca-se evitar que ele volte a delinqüir. Bitencourt (1999) demonstra que a vertente de prevenção especial é defendida por várias correntes em todo o mundo. Na França e na Itália, ela é traduzida pela teoria da Nova Defesa Social, pela qual uma pena não deve ser postulada a cada delito, mas a cada pessoa; na Alemanha, é conhecida pelas teorias de Von Lizt; na Espanha, pelos estudos da Escola Correlacionista.

Maurach (1995) afirma, entretanto que independente das diferenças entre essas diversas correntes, o ponto comum entre elas é a influência inibitória que a pena tem sobre seu autor, sendo essa sua própria finalidade, que é subdividida em três funções: intimidação (prevenção individual), ressocialização (correção) e asseguramento (recuperação). Tais funções podem ser consideradas objetivos positivos na medida em que visam reincorporar o autor à comunidade jurídica.

Bitencourt (1999) assinala, assim, que a prevenção especial não busca a intimidação do grupo social, nem retribuição do fato praticado, mas tão somente a prevenção da reincidência, permitindo uma melhor individualização do remédio penal.

A crítica feita por Roxin (1986), em se tratando desta teoria é que, se a pena tem a finalidade de prevenir que o autor volte a delinqüir, ela não deveria ser aplicada nos casos em que não houvesse perigo de reincidência.

Outras teorias surgiram a respeito da finalidade da pena, mas em muita se pareciam com as citadas anteriormente e receberam, logicamente, críticas muito semelhantes. Analisando-se então, as tentativas de explicar a própria pena como o fator preventivo existente no Direito Penal, averigua-se que nenhuma delas foi sólida o suficiente para mostrar a representatividade da pena como item de prevenção. Além disso, ainda que teoricamente a pena pudesse ter caráter preventivo, a omissão do Estado quando necessária sua aplicação gera um descrédito coletivo em relação à possibilidade de punição à transgressão de uma norma. Nesse caso, o Sistema de Justiça Criminal deveria exercer um papel de extrema importância, não fosse a impressão de reinante impunidade uma de suas principais características. Nos estudos de Marcão e Marcon (2001), por exemplo, são elencadas uma série de causas supralegais da impunidade, como o desaparelhamento do Poder Judiciário, a insuficiência de juízes e de recursos, a lentidão da Justiça que provoca prescrição retroativa ou intercorrente dos crimes, dentre outros. A pena, então, decididamente não exerce, no Brasil, qualquer caráter preventivo, seja por questões fundamentais ou pela dificuldade de sua aplicação.

Assim, ficaria a cargo do Estado a melhor utilização do Sistema de Justiça Criminal para a prevenção da criminalidade. Beato (2010) ressalta que a compreensão das causas da violência e da criminalidade é o que possibilita a formulação de previsões mais acertadas, e sendo assim, de medidas de segurança pública que representem reais intervenções em aspectos decisivos para o controle de delitos.

3.2 Causas da violência

Admitindo-se como premissa que a atuação do Estado na prevenção de crimes deve estar pausada por um processo científico de determinação das causas que levam à violência, há a necessidade de revisitar as teorias a respeito do tema, a fim de se avaliar a viabilidade dos métodos de atuação. Para essa compreensão, no entanto, há uma gama de correntes que avaliam as possíveis motivações da violência ou do cometimento de crimes. Tais correntes representam paradigmas que podem ser adotados pelo Estado na fundamentação e formulação de políticas públicas de segurança.

Nos principais estudos a respeito do tema nota-se uma inevitável e necessária veia sociológica, por vezes, negligenciada no âmbito jurídico, pois, conforme Beato (2010), a evolução das teorias sobre as causas da violência se desenvolveu em constante diálogo com as ciências sociais. Para o autor, as questões relativas à criminalidade estão comumente relacionadas aos problemas da ordem e da ação no âmbito social.

Sendo a sociedade um fenômeno emergente da implementação de obrigações sociais criadas por seus próprios membros, a adesão de cada indivíduo aos valores e normas pré-estabelecidos se dá mediante a perfeita socialização do sujeito (DURKHEIM; PARSONS apud BEATO, 2010). As normas legais, entretanto, determinam condutas individuais através das sanções e do controle social. Com isso, aplicação da lei caso a caso gera conseqüências que devem ser, para Beato (2010), analisadas num nível micro de análise, tomando a natureza das leis penais como regra de decisão e comportamento, podendo-se, então, alcançar as condições de seu uso pelos membros da sociedade.

O nível microssocial, nas linhas teóricas de Short (1997), enfoca a interação de indivíduos no decurso de um acontecimento criminal, como é o caso da vítima e do delinquente. Assim, a atenção é dirigida para o desenrolar dos acontecimentos, para a interação das partes envolvidas nos acontecimentos e como ela molda o comportamento e os resultados comportamentais, tais como a violência.

Através de um paradigma macrossocial, por outro lado, busca-se identificar os fatores de risco que levam ao crime, a exemplo da concentração de pobreza, das estruturas de oportunidade, do declínio do capital social, a disposição de populações excluídas ou a socialização de gênero. Para Short (1997) o nível macrossocial destina-se a entender o papel das organizações, sistemas sociais, estruturas sociais e culturas que produzem diferentes taxas de comportamento violento. Estão inseridos no âmbito macrossocial, então, os estudos sobre as organizações, os sistemas sociais, forças econômicas, e subculturas.

O autor afirma que a determinação do paradigma a ser utilizado facilita o entendimento das causas da violência, mas que nenhum deles deve ser tomado separadamente.

Beato (2010) menciona, ainda com relação aos aspectos macrossociais, os fatores de natureza ambiental e situacional que podem estimular a ocorrência de crimes, conforme preconizado pela tradição sociológica da Escola de Chicago.

No Brasil, as perspectivas a respeito da criminalidade passam pela análise da quantidade de crimes que ficam impunes, como dito em parágrafos anteriores. Pelos estudos de Edmundo Campos (1980) a impunidade estende-se a todas as classes sociais, inclusive às elites, denotando, assim, a existência de fatores institucionais que influem nas taxas de criminalidade.

Ainda inserida no paradigma macrossocial, a discussão sobre as causas da violência foi conduzida por Merton (1957) à relação entre a criminalidade e às situações de anomia, ou seja, situações em que o Estado não alcança um contingente social, perdendo o controle sobre ele. Em outras palavras, a anomia é uma resposta individual a situações em que há uma incongruência entre metas culturalmente estabelecidas e os meios legítimos para atingi-las. A partir dessa interpretação, pode-se entender que crimes são cometidos por indivíduos que não conseguiriam alcançar suas aspirações através dos meios que lhe foram fornecidos pela sociedade. Assim, os ideais de sucesso de uma sociedade passam a ditar o comportamento em várias esferas sociais.

Essa tese, entretanto, mostra-se insuficiente, conforme enuncia Beato (2010), no sentido de fornecer explicações sobre a existência de aspirações únicas e universais e à suposição de que as habilidades para crime sejam inatas. Para o autor, há demasiadas controvérsias na doutrina sociológica a respeito da existência de valores universais e inerentes a todos os indivíduos. Além disso, a opção por uma carreira criminosa não feita individualmente, mas a partir de seleções pautadas em processos de socialização, valores e aprendizado de habilidades. Não se pode inferir aqui que todas as pessoas que tiverem contato com um criminoso se tornarão criminosas, pois como afirmou Sutherland (1993), o comportamento é determinado por uma associação diferencial, não apenas por meio de um simples contato com aqueles que violaram a lei (SUTHERLAND apud BEATO, 2010). Explicando melhor, Coleman (2005) afirma que o comportamento criminoso é aprendido, como qualquer outro comportamento, e junto com esse aprendizado incorporam-se as técnicas do crime e as motivações favoráveis a esse comportamento.

Beato (2010) traz, ainda, elucidações críticas sobre teorias culturalistas, que “repousam sobre o falso suposto da “socialização completa” dos criminosos e jovens envolvidos com atividades ilícitas”. Conforme o autor, a idéia de que moradores de uma mesma comunidade compartilham acriticamente de uma série de valores do crime faz concluir que existem não somente indivíduos delinqüentes, mas comunidades inteiras em delinqüência. Teorias dessa vertente mistificam, então, conceitos como “cultura da delinqüência”, “classes perigosas” e seus correlatos “malandros” e “traficantes”. Como conseqüência, as medidas tomadas com base nas idéias culturalistas tratam de reformular os valores culturais através de programas civilizatórios no âmbito da cultura, ou mesmo da religião.

Nesse aspecto, as pesquisas de Campos (2005) corroboram as afirmações de Beato (2010), já que através da análise de inúmeras informações estatísticas sobre a criminalidade tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos da América, o primeiro autor conclui que a lei estigmatiza e criminaliza indivíduos das camadas mais baixas da população: desempregados, trabalhadores informais e jovens prestes a entrar no mercado de trabalho. Para Campos (2005) atribui-se a certos indivíduos maiores possibilidades de desempenhar determinados papéis sociais, e a sociedade cuida para que tal papel seja cumprido, propagando a “marginalização da criminalidade”, também reconhecida na Teoria dos Rótulos, a ser elucidada em parágrafos posteriores.

A corrente de Direito Humanos, por outro lado, mostrou-se mais bem sucedida ao denunciar os crimes de Estado e especificamente da polícia. A concepção humanista tem como base o conceito de conflito social, bem como as teorias de Weber e Simmel, que explicavam a sociedade como um conjunto de grupos que lutam pelo poder político, pelo poder social e pelo prestígio. A criminologia crítica inglesa, por sua vez, inspirada nas idéias marxistas, sustentam que o crime é determinado pelo comportamento dos poderosos que criminalizam aquilo que mais ameaça suas posições, e essa atuação seria corroborada pelo Estado na definição de leis. A partir daí, o Estado fornece lastro para atuação de seu aparato policial, possibilitando à polícia uma atuação brutal e violenta (BEATO, 2010).

Contudo, a corrente humanística não foi suficiente para desenvolver uma agenda sólida que servisse de base para um planejamento estratégico de segurança pública e, com isso, sua aplicação prática mostrou-se um tanto ineficaz.

Outra teoria de relevância na perspectiva crítica é a teoria da rotulação, que trabalha com a noção de desvio como sendo um nome de um conflito social em que pequenos grupos são subjugados por outros melhor organizados e que detém grande parte do poder. Para Beato (2010), as manifestações de poder, em nível organizacional, podem ser vistas pela maior probabilidade que os grupos minoritários têm de serem presos e condenados pela justiça, além de terem mecanismos de defesa mais precários. A partir da subjugação de grupos mais fracos, os grupos dominantes, por meio de empreendedores morais, criam rótulos para seus integrantes e determinam condutas a serem criminalizadas.

A teoria da rotulação não explica, todavia, certos aspectos empíricos, como a relação de raça, gênero e idade com as taxas criminais. De acordo com Beato (2010), crimes são cometidos em sua maior parte por homens, jovens e, no caso americano, negros. Além disso, a teoria é insuficiente para explicar por qual razão ao longo dos anos os indivíduos tendem a cometer menos crimes.

Prosseguindo, Beato (2010) demonstra a percepção de que a insuficiência das teorias anteriormente explicitadas em explicar alguns aspectos do crime conduz à aceitação majoritária da teoria do auto-controle, já que, conforme os principais autores dessa tese, crimes costumam acontecer ordinariamente e em situações corriqueiras, normalmente envolvendo transeuntes na rua. Conclui-se então, que a conduta criminosa pode ser determinada simplesmente pela pouca disciplina individual em relação ao cumprimento de normas.

Face à tamanha diversidade de entendimentos, eis que se justifica a política de segurança pública difusa adotada no Brasil. Se, por um lado, as propostas de reformas sociais e medidas assistencialistas visam suprir carências que justifiquem o ato delituoso, como preconizado pelas teorias socioeconômicas, por outro lado, com base na teoria do autocontrole, tomam-se providências relativas à baixa disciplina individual no cumprimento de normas, como legislações mais recrudescidas e policiamento ostensivo.

4 POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Conforme as teorias e estudos sobre o crime, há diversos entendimentos que podem pautar a atuação da Justiça Criminal no Brasil. Entretanto, muitas teorias são inviáveis na adoção de políticas criminais ou por exigirem uma atuação demasiadamente invasiva do Estado ou por referirem a aspectos sobre os quais o Estado não tem controle.

Parte dos estudos a respeito das causas da violência dão respaldo, por outro lado, a medidas de segurança voltadas para grupos a que pertencem indivíduos delinquentes, abandonando, de certa forma a abordagem individual. Nesse caso, a decisão sobre o tipo de abordagem torna-se tanto mais dificultoso, pois não se trata somente de grupos economicamente desfavorecidos, mas de diversas subculturas relacionadas à fatores como raça e etnia. Há que se tomar o devido cuidado, nesse sentido, de não cair nas armadilhas da teoria do rótulo, propiciando a “marginalização da criminalidade”, já que a crença no potencial criminoso de grupos marginalizados corresponderá a uma maior vigilância sobre eles e, consequentemente, a uma taxa maior de indiciamentos e criminalidade desse grupo específico (BEATO, 2010).

Outro tipo de abordagem é a voltada para a distribuição espacial de crimes e de contextos oportunos para a sua ocorrência. Chamada de abordagem ecológica, esse tipo de análise visa compreender fatores relacionados ao espaço urbano e à sua dinâmica contextual. Nesse caso, não se trata das características do delinqüente, mas da comunidade e do espaço urbano que ele ocupa, no intuito de captar a razão para a violência se concentrar em algumas regiões. Essa vertente é baseada na constatação de que certas comunidades, ainda que modificadas as condições sociais e culturais de seus residentes, mantêm altos índices de criminalidade (REISS apud BEATO, 2010).

Numa perspectiva economicista, criminoso é tido como uma pessoa racional que faz ponderações sobre o custo e o benefício de suas ações. Com base nisso, poderiam ser adotadas políticas de segurança que tentem reduzir os benefícios e aumentar os custos do crime em relação ao trabalho. Beato (2010) alerta, contudo, que esse é um pressuposto teórico. Assim, não quer dizer que todo criminoso haja racionalmente quando decide praticar um crime. Mesmo assim, pautadas em suposições essencialmente econômicas, medidas como o aumento do risco real de punição, incrustado na eficiência e celeridade da máquina policial e judiciária, bem como propostas de incentivo aos meios legítimos de sustento, seriam adequadas a esse modelo de interpretação.

A abordagem economicista, no entanto, deve ser tomada com cautela pois, além dos criminosos na verdade agirem com racionalidade limitada, Beato (2010) assume que o crime pode tomar formas variadas e ter intenções diversas, de sorte que tratá-lo com homogeneidade pode ser extremamente dificultoso. Em todo caso, a complexidade do sistema punitivo brasileiro impossibilita quaisquer generalizações.

Observa-se, então, que a dificuldade na definição de uma política de segurança pública a ser implantada pelos órgãos e organizações que compõem o Sistema de Justiça Criminal encontra-se exatamente na complexidade em determinar as causas do crime e, conseqüentemente, em adotar uma abordagem adequada.

5 DADOS E ANÁLISES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO

Analisadas as possibilidades de atuação do Sistema de Justiça Criminal, bem como os paradigmas pelos quais se pode abordar o tema da criminalidade, resta, para determinar sua capacidade preventiva, identificar de que maneiras sua atuação é em prol da prevenção.

Embora haja uma gama extremamente pequena de pesquisas sobre seus resultados e ações, estudos realizados por técnicos do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), no ano de 2008, trazem algumas perspectivas de análise..

Entende-se aqui, que a atuação do Sistema de Justiça Prisional não o único fator responsável pelo aumento ou redução dos índices de criminalidade, já que o crime é um fenômeno social complexo que em muitos casos não pode ser alcançado somente por uma mobilização estatal. Contudo, sua atuação é primordial, já que lida mais diretamente com o tema que qualquer outra organização do governo.

Conforme relatório do IPEA, há três níveis de prevenção na análise da capacidade preventiva desse sistema:

1) Prevenção primária: estratégias dirigidas ao ambiente socioeconômico e a fatores que possam interferir nas taxas de violência;

2) Prevenção Secundária: estratégias que visam atingir pessoas mais propensas ao cometimento de crimes e mais suscetíveis a serem vítimas;

3) Prevenção terciária: estratégias direcionadas a evitar a reincidência e promover tratamento, reabilitação e reintegração de indivíduos (autores ou vítimas) à sociedade.

Tratando-se de prevenção primária, o Sistema de Justiça Criminal age basicamente de três maneiras. A primeira delas, o policiamento ostensivo, parte do pressuposto que a presença policial aumenta o risco do criminoso ser pego em flagrante e reduz a possibilidade de violência e tumultos. Contudo, não é possível garantir a presença de policiais em todas as localidades e não há um mapeamento dos locais que podem contar com o policiamento ou ronda policial, nem sobre a qualidade desse serviço.

Outra forma primária de prevenção está na implementação e no apoio a programas educativos, como os de prevenção do uso de drogas, aplicados pelas Polícias militares estaduais, mas quanto a essas ações também não há pesquisas avaliativas sobre seus resultados.

Por último, há a capacidade de punição da Justiça Criminal, que se encontra totalmente defasada pela impunidade. Se a punição dos crimes fosse total, o risco para o criminoso seria aproximado de 100%, a menos que o bônus obtido com o crime fosse considerado pelos delinqüentes maior que o ônus da pena.

Já em relação à prevenção secundária, que se dirige aos fatores que contribuem para a o cometimento de crimes e para a vulnerabilidade de vítimas, as organizações do Sistema de Justiça Criminal poderiam atuar junto a grupos nos quais a proporção de vítimas e infratores fossem maiores do que em outros contingentes populacionais. Porém, como não há pesquisas sobre a vitimização ou registros administrativos capazes de fornecer com precisão informações sobre quais grupos se concentram vítimas e agressores de cada tipo penal. Para se fazer justiça, na data da publicação do relatório do IPEA anteriormente citado, a pesquisa mais próxima desse objetivo tinha sido realizada em 2005 e indicava idade e sexo dos agressores para alguns tipos de crime.

Além disso, a Justiça Criminal enfrenta o ônus de que, trabalhos como esses podem ser extremamente estigmatizantes, de maneira que tais ações são possivelmente mais bem empreendidas por instituições que não pertencem ao Sistema Criminal, como assistências sociais, agentes de saúde e educadores.

A prevenção terciária, por fim, que refere-se a pessoas que já cometeram ou já foram vítimas de crimes, encontra vazão na atuação e polícias, órgãos judiciários e no sistema de execução penal.

A polícia é envolvida nesse tipo de prevenção nas fases de registro do crime, da sua apuração e na realização de prisões. Contudo, por ao contar com um sistema de vigilância que lhe permita identificar a ocorrência da maioria dos crimes, muitos deles sequer chegam a ser registrados. O registro, fica, então, dependente da manifestação de vítimas e testemunhas. O relatório do IPEA (2008) demonstra que a participação dos cidadãos nesse sentido não condiz com o número de crimes que efetivamente ocorrem. Em 2002, uma pesquisa realizada nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Vitória mostrou que a proporção de vítimas entrevistadas que registrou o boletim de ocorrência não chegou a 40%.

O índice baixo de notificação pode decorrer do descrédito do Sistema de Justiça Criminal, pois quanto mais a vítima acredita que sua atuação não vai surtir efeitos, menor será sua tendência à registrar o crime. Nesse sentido, a criação das Ouvidorias de Polícia e dos Serviços de disque denúncia tem conotação de estímulo para o registro de eventos delituosos e para a aproximação entre o Estado e a sociedade. De acordo com o relatório do IPEA (2008), as novas medidas estão obtendo sucesso, principalmente no caso do Disque- Denúncia.

Em relação à apuração do crime, isto é, da identificação do crime e seu autor, os resultados de comparação entre o número de registros, inquéritos e queixas-crimes, é pouco encorajador. Ao receber a denúncia, o delegado tem a discricionariedade de instaurar um inquérito policial ou não. Ao final do inquérito, os resultados são levados ao Ministério Público na forma de “queixa-crime”. Embora as pesquisas sejam escassas o relatório do IPEA (2008) demonstra que é extremamente baixa a proporção de denúncias que viram inquéritos e a proporção de inquéritos que se tornam “queixa-crime”.

Sobre a realização de prisões pela polícia, em flagrante ou pelo cumprimento de ordens judiciais, não há dados ou pesquisas que possam determinar a eficiência preventiva desse órgão, o que certamente não é um bom indicador. A falta de avaliações de desempenho perpetua o descrédito do Sistema de Justiça Criminal, já que impede a percepção da real necessidade de medidas de melhoria.

Sobre atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário na área criminal, as raras pesquisas existentes apresentam um quadro preocupante. Dados de uma pesquisa realizada em 2006 na cidade do Rio de Janeiro demonstram altas taxas de impunidade e pouca celeridade do Poder Judiciário, com 13,6% dos processos criminais prescritos (CANO apud IPEA, 2008).

Já o Sistema de Execução Penal, que tem como principal objetivo evitar a reincidência e promover o tratamento e a reintegração social dos apenados, tem como principal medidor a taxa de reincidência, ou seja, a porcentagem de ex-condenados que voltaram a cometer infrações. Como as pesquisas na aérea criminal são escassas, não no Brasil uma taxa de reincidência nacional, mas o relatório do IPEA traz a porcentagem de reincidentes na população prisional, que é de 42,3%. O relatório mostra, também, que o sistema prisional encontra-se em situação de precariedade, já que faltam, em grande parte do território nacional, órgãos que deveriam contribuir para a prevenção da reincidência, como penitenciárias, cadeias públicas, casa de albergado e órgãos de monitoramento do sistema carcerário. Além disso, há uma grande porcentagem de presos (em torno de 80%) que não estão envolvidos em atividades educacionais ou de trabalho, o que compromete sua futura reinserção social.

Os dados expostos aqui, com base em estudos realizados por técnicos do IPEA em 2008, mostram, ainda que sem dados estatísticos sólidos e abrangentes, o comprometimento da capacidade preventiva do Sistema de Justiça Criminal, que atua sem políticas incisivas de prevenção à violência e de maneira limitada. Pelo estudo em questão, nem mesmo a punição tem demonstrado efeitos significativos, já que a taxa de reincidência aproxima da metade da população prisional. Nota-se por fim a necessidade de aperfeiçoamento do Sistema de Justiça Criminal, a fim de que as políticas de segurança pública tenham maior efetividade. Não se afasta, todavia, as dificuldades anteriormente elucidadas sobre a definição paradigmática do tipo de abordagem que se deve utilizar para a determinação de tais políticas.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como já elucidado anteriormente, o Direito Penal, que se faz presente e concreto na vida social principalmente por meio do Sistema de Justiça Criminal, tem como um de seus objetivos primordiais a manutenção de índices baixos de criminalidade, por meio da prevenção, não só negativa (imposição de sanções), mas também positivas (políticas de segurança pública).

No Brasil, nota-se, se não um descaso, uma defasagem da justiça criminal na determinação de políticas públicas, que se mostram tímidas em relação aos níveis de criminalidade identificados.

Primeiramente, pelas análises feitas até então, é possível perceber que a complexidade do tema dificulta a adoção de políticas baseadas em análises macrossociais, reduzindo a atuação do sistema judiciário criminal ao tratamento casuístico do crime, através da imputação da pena ao delinqüente e a proteção única ao bem jurídico. A complexidade de crimes impossibilita uma generalização que norteie medidas de segurança pública e os estudos relativos às causas da violência, quando não contraditórios, não são abrangentes o suficiente.

Não obstante, a pena, por si só, não consegue exercer a função preventiva relegada ao Direito Penal, especialmente se não for sustentada por um sistema de aplicação que lhe dê efetividade, como é caso do Brasil.

A ausência de pesquisas consistentes e específicas sobre o tema da criminalidade é, ainda, mais um empecilho à efetiva prevenção da violência, pois ao não saber em que medida se encaixam os níveis criminais, quais as suas características e especificidades, as ações de segurança pública tornam-se penosas e infrutíferas.

Por outro lado, o sucateamento das máquinas jurídicas e carcerárias, a atuação insuficiente e ao mesmo tempo bruta da polícia, bem como a falta de conexão entre os órgãos do sistema de justiça criminal, propagam um descrédito em relação aos valores protegidos pelo Estado, e uma redução do risco (ou do custo) do crime para o delinqüente.

Assim, a capacidade preventiva do Sistema de Justiça Criminal é prejudicada e larga escala, seja por fatores técnicos ou conceituais, de maneira que se torna difícil a crença de que dentro de suas organizações específicas (polícia, ministério público, órgãos judiciários, sistema prisional e defensoria pública) seja possível a conciliação de abordagens macrossociais com as de nível micro atualmente existentes.

REFERÊNCIAS

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O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL NA EXECUÇÃO PENAL - VISÃO GLOBAL

Dalio Zippin Filho - Redação O Estado do Paraná, 19/07/2008 às 16:35:42


A vida em sociedade exige um complexo de normas disciplinadoras que estabeleçam as regras indispensáveis ao convívio entre os indivíduos que a compõem.

O conjunto dessas regras denomina-se direito positivo, que deve ser obedecido e cumprido por todos os integrantes do grupo social e prevê as conseqüências e sanções aos que violarem seus preceitos.

À reunião das normas jurídicas pelas quais o estado proíbe determinadas condutas, sob ameaça de sanção penal, estabelecendo ainda os princípios gerais e os pressupostos para a aplicação das penas e das medidas de segurança, dá-se o nome de direito penal.

Das necessidades humanas decorrentes da vida em sociedade surge o direito, que visa a garantir as condições indispensáveis à coexistência dos elementos que compõem o grupo social.

O fato que contraria a norma oferecendo ou pondo em perigo um bem alheio ou a própria existência da sociedade é um ilícito jurídico, que pode ter conseqüências meramente civis, que não nos interessa nesse momento, ou possibilitar a aplicação de sanções penais, que nos interessa.

Quando, em muitas vezes, as sanções civis se mostram insuficientes para coibir a prática de ilícitos jurídicos graves, que atingem não apenas interesses individuais, mas também bens jurídicos relevantes em condutas profundamente lesivas à vida social, arma-se o estado, então, contra os respectivos autores desses fatos, cominando-se e aplicando sanções severas por meio de um conjunto de normas jurídicas que constituem o direito penal.

O fim do direito penal é a proteção da sociedade e, mais precisamente, a defesa dos bens jurídicos fundamentais, tais como a vida, integridade física e mental, honra, liberdade, patrimônio, costumes e paz pública.

Muitas são as críticas apontadas contra o sistema punitivo.

Uma delas é a de que ele é burocrata e insensível outra, que é retrógrado e oportunista.

O processo de compartimentalização de funções subjacentes ao sistema punitivo faz dele um mecanismo sem alma.

Nils Christie diz que “a distância social tem uma importância particular. A distância aumenta a tendência de atribuir a certos atos significado de crimes, e às pessoas, o simples atributo de criminosas”.

Nós criamos os crimes. O crime como expressão de um conflito, na maior parte das vezes, não é mais compreendido pelos juristas. Seu encastelamento em torno das normas impede o questionamento da lei e a busca do fundamento doutrinário da pena.

Os conceitos com puro esteio na norma neutralizaram a discussão sobre as determinações sociais do delito, sobre qualificação política da transgressão ou sobre as razões existenciais, estruturais e conjunturais que condicionam a pena.

A dogmática estrita cobre com um manto supostamente neutro as decisões cotidianas da Justiça que são, antes de tudo, humanas.

O referencial de sensibilidade foi substituído pelo paradigma da lei.

Tem-se como premissas da punição ou sanção, em aspecto criminal, os caráteres retributivo, preventivo e ressocializador.

Podemos entender como retributivo a noção de que todo mal causado a outrem deve ser rebatido pelo Estado, numa nítida demonstração de “quem fez deve pagar”.

O preventivo, genérico por natureza, trás em sua própria definição a vontade de isolar aquele que, vivendo dentro das regras socialmente impostas, as violou.

Tem como base o homem, aquele ser humano capaz de transgredir a mediocridade das ações de um homem diligente.

O aspecto ressocializador visa a trazer este mesmo homem, já retribuído em seu ato e prevento em seu meio, para aquela sociedade outrora violada, só que desta vez pronto para comportamentos mais regrados em seu meio.

As legislações não mudam comportamentos; estes necessitam de uma fórmula, complexa em sua essência, discutida em todos os recantos do País e de nosso planeta, e sem dúvida, antagônica e divergente junto a seus autores.

Não há pacificação no entendimento e na doutrina do combate à criminalidade, nem tampouco aos meios necessários para a extinção de impunidade. Em verdade, desde a década de 70, a política social e criminal em nosso País não mais se preocupou com os estabelecimentos penais, seja em sua implementação, manutenção ou reformulação.

Com um contingente carcerário de aproximadamente quatrocentos e vinte e oito mil encarcerados, nosso País sobrevive, sacrificando a própria sociedade.

Seria desnecessário entoar os sons de nossas celas, superlotadas e degradantes, capazes de subverter qualquer ser humano, transformando-os em homens piores do que antes. Nossos legisladores funcionam como a maré dos oceanos, ora a favor, ora contra, vislumbrando imediatismo, ausência de estratégia político-governamental e desinteresse político partidário, associado a interesses pessoais.

Em dados momentos, de acordo com acontecimentos de cunho criminal, explorados na mídia, leis são aprovadas, na ardência das emoções, desfigurando uma estratégia político-governamental. Em um momento, aplaudimos institutos amenizadores do sistema punitivo, como a aplicação de alternativas penais, desafogadoras do sistema carcerário, e em outros momentos, aplaudimos igualmente, na ardência das emoções, leis “hediondas”, que pregam um maior rigor nas punições altos e baixos, o ir e vir, sem buscar a direção certa.

Buscamos esvaziar as celas dos cárceres com pacotes e medidas legislativas que criam um verdadeiro caos, que resulta na certeza da impunidade, quando o ideal a ser alcançado é a certeza da punição sem que seja esquecida a dignidade da pessoa humana.

Os códigos, quando elaborados, fazem parte de um sistema e assim devem permanecer, pois, se esse sistema for quebrado, todo o arcabouço estará comprometido. As últimas modificações legislativas que alteraram os Códigos Penal e de Processo Penal e regulamentaram alguns artigos da Constituição Federal quebraram de certa forma o sistema, criando, na maioria das vezes, verdadeiros monstros jurídicos. O Decreto-Lei 2848 de 7/12/40 (Código Penal), no decorrer dos seus sessenta e sete anos já sofreu inúmeras alterações, sendo a principal delas em 11/7/84 pela Lei n.º 7.209, que alterou a sua Parte Geral, mas, observem bem, toda a sua Parte Geral.

Agora, em nome do combate à criminalidade, impõe-se um direito penal do terror, onde crimes são capitulados sem que haja qualquer discussão no meio jurídico e onde o sistema é todo alterado e quebrado.

O Código Penal de 1940 ostentava uma acentuada influência do Código Italiano de 1930 e do Código Suíço de 1937 sem adotar a pena de morte e a prisão perpétua.

A regra geral era a pena privativa de liberdade com variações de tempo de duração entre limites rígidos. A pena privativa de liberdade só era atenuada em sua rigidez com a possibilidade da Suspensão Condicional da Pena (Sursis) para as condenações inferiores a dois anos e da antecipação da liberdade mediante o cumprimento de determinadas condições (Livramento Condicional). Desta forma, o direito penal, por si, enquanto instrumento de combate à criminalidade, junto com a justiça criminal, aqui se entendendo o Judiciário, Ministério Público e advogados, não tem força para modificar o quadro atual.

Os movimentos de lei e ordem prometeram resultados que não cumpriram e nem vão cumprir os seus propósitos. Em verdade não fizeram mais do que fortalecer a instituição da prisão, retirando dos seus destinatários as garantias antes prometidas. É ilusão pensar que penas mais severas e mais polícia reduzem a criminalidade. É preciso que a política criminal do País, seguindo o pensamento da Nova Defesa Social, cuide de implementar não só a reforma das leis, mas, principalmente, a reforma das instituições públicas, que devem interagir, enquanto aparelhos de contenção, na luta contra a criminalidade. A grande verdade que se constata é que quanto maior o número de leis, mais aumenta a criminalidade.

A população carcerária atinge níveis inimagináveis - a previsão é de que deve dobrar nos próximos cinco anos. A insegurança nas ruas constitui hoje o problema que causa mais preocupação, temor e insatisfação aos habitantes de todos os quadrantes do País. A lei precisa começar a permitir aquilo que já existe de fato ou seja, a livre negociação entre as partes, a reconciliação, o perdão.

O Ministério Público, dono da ação penal, não goza do direito de desistir e transigir no curso do processo iniciado, mesmo verificando que o castigo não irá surtir efeito algum. Não se aceita mais aquela espécie de direito penal punitivo repressivo, ao estilo clássico. O que se deseja hoje é um direito penal realista, social e humanitário.

Pouco a pouco, o direito penal regressa aos tempos da composição, admitindo a indenização, o acordo, a restituição da coisa, o perdão do ofendido, como causas de extinção da punibilidade, bem como a solução da arbitragem. Vai perdendo o seu caráter essencialmente punitivo, quando o Estado passa a dar ênfase à prevenção, descriminaliza inúmeras condutas, pune outras muito mais atenuadamente, e, sobretudo substitui as penas privativas de liberdade por multa ou penas restritivas de direitos ou substitutivos penais. O direito penal é apenas um dos instrumentos de controle social de que lançam mão os grupos dominantes para consolidar o poder. O direito penal Mínimo preconiza a menor intervenção estatal possível, aliada, sempre, ao mais amplo espectro de garantias.

A efetivação desse princípio pode se dar através de distintas vertentes: pelo processo legislativo, através da descriminalização, despenalização e descarcerização;pelo Poder Executivo, via uma política preventiva eficiente; finalmente, no âmbito processual, justamente através de um processo penal que proporcione a todas as pessoas a ele submetidas, e especialmente, ao acusado, amplas garantias.

O moderno direito penal tem, como funções, tanto tornar viável a aplicação da pena como também servir de efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais. Funciona esse ramo do direito como limitador da atividade estatal, estruturando-se de modo a garantir plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, ampla defesa, etc.

Precisas as observações que seguem do ministro Marco Aurélio de Mello: “Precisamos parar com essa mania de acreditar que vamos corrigir as mazelas do Brasil mediante novas leis. O que precisamos, em última análise, é de homens que cumpram as existentes”. (in Folha de S.Paulo de 22/4/2001)

Carlos Mario da Silva Velloso, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, a seu turno, com propriedade assevera que “as penas alternativas constituem um excelente método de recuperar. A cadeia, as grades, devem ser reservadas para os criminosos perigosos, aqueles que podem causar danos e riscos à sociedade. Mas é preciso atenção: não pode haver impunidade. A mais leve transgressão às regras da sociedade deve ser punida, de preferência com prestação de serviços à comunidade e multas altas de milhões de reais, especialmente para os crimes de colarinho branco e crimes tributários”. (Jornal do Advogado Minas Gerais março/2001)

O professor Fernando da Costa Tourinho Filho, processualista de escol, nos diz que “o direito penal não é a panacéia para todos os males da sociedade. Essas novas tendências valorizam o direito penal, que só deve ser chamado quando, realmente, a sua atuação for imprescindível, quando estiver em jogo um bem de real significado para a sociedade, e que só ele possa agir eficazmente”.

Genuzio Bentini, por fim, arremata que “a verdade, a verdadeira verdade, não é nunca aquela que chega até nós... Por mim, convenci-me de que a verdade não entra nas salas dos tribunais, nem mesmo nos processos de grande repercussão. Ela fica sempre pelas escadas, ou pelo caminho”.

Antes do século XVII, a prisão era apenas um estabelecimento de custódia, em que ficavam detidas pessoas acusadas de crime, à espera da sentença, bem como doentes mentais e pessoas privadas do convívio social por condutas consideradas desviantes (prostitutas, mendigos ) ou questões políticas. No final do século XVII, a pena privativa de liberdade era a principal sanção penal e a prisão passou a ser o local da execução das penas. Nascem, então, as primeiras reflexões sobre a organização das casas de detenção e sobre as condições de vida dos detentos.

Recentemente, o modo de execução da pena adquiriu lugar de destaque tendo em vista que a pena não tem somente finalidade retributiva e preventiva, mas também, e principalmente, a reintegração do condenado na comunidade. É neste contexto que surge a autonomia do direito penitenciário.

O reconhecimento dos direitos humanos do apenado é que dá juridicidade à execução penal, e origem ao direito penitenciário. O princípio da proteção dos direitos humanos do preso é que fundamenta a autonomia do direito penitenciário. O direito penitenciário deriva da unificação de normas do direito penal, do direito processual penal, do direito administrativo, do direito do trabalho e da contribuição das ciências criminológicas, sob o influxo dos princípios de proteção dos direitos da pessoa do preso, humanidade, legalidade e jurisdicionalidade da execução penal.

Durante muito tempo, o condenado foi objeto da execução penal e só recentemente é que ocorreu o reconhecimento dos direitos da pessoa humana do condenado, ao surgir a relação de direito público entre o condenado e o Estado.

O direito penitenciário resultou da proteção dos direitos da pessoa humana do preso. Esses direitos se baseiam na exigência ética de se respeitar a dignidade do homem como pessoa moral. O delinqüente, qualquer que seja o grau de sua decadência, não perdeu essa dignidade, atributo essencial do ser humano, que constitui o supremo valor que deve inspirar o direito. Os princípios da política penal e penitenciária universalmente aceita consideram o acusado e o condenado como pessoa sujeita a direitos e deveres, objetivando a sua permanência ou sua reintegração no convívio social.

Pena é a imposição da perda ou diminuição de um bem jurídico, prevista em lei e aplicada pelo órgão judiciário a quem praticou um ilícito penal. Teorias unitárias ou ecléticas (predominam na atualidade) e buscam conciliar a exigência de retribuição essência da pena com os fins de prevenção geral e de prevenção especial, retribuição manifestada através do castigo. Prevenção como instrumento de defesa da sociedade.

A pena encontra sua justificação no delito perpetrado e na necessidade de se evitar a prática de novos delitos no futuro. É indispensável que a pena seja justa, proporcional à gravidade do injusto e à culpabilidade de seu autor e necessária à manutenção da ordem social.

A Carta Magna proclama a proteção dos direitos do indivíduo a partir da prática da infração penal, momento em que o direito de punir, de abstrato, transforma-se em concreto, surgindo a persecutio criminis in judicio como poder-dever do Estado

A evolução do pensamento penal conduz à obediência à regra da proibição de penas desnecessárias, desumanas, cruéis ou degradantes. A pena de prisão, desacreditada em sua função ressocializadora, deve ser a última razão e aplicada aos delitos de maior gravidade cometidos por delinqüentes perigosos. A resposta penal clássica da pena de prisão, além de representar a forma mais drástica e violenta de comportamento estatal diante do delito, pouco contribui para evitar a reincidência e assegurar a paz social.

O cumprimento da pena em cadeia, maltrata, corrompe e degenera o homem. A preponderância da ressocialização, como fim da execução da pena, não deve pautar somente os programas de política criminal, mas formular uma ética jurídica e penitenciária que represente equilíbrio entre a liberdade individual e os interesses de uma sociedade democrática.

A prisão não serve para o que diz servir; neutraliza a formação ou o desenvolvimento de valores;estigmatiza o ser humano; funciona como máquina de reprodução da carreira no crime; introduz na personalidade a prisionalização da nefasta cultura carcerária; estimula o processo de despersonalização e legitima o desrespeito aos direitos humanos.

A prisão deve ficar reservada aos casos em que o infrator represente perigo físico concreto à sociedade, possibilitando, por outro lado, que as sanções substitutivas do emprisionamento possam reduzir a pressão sobre os recursos financeiros exigidos para manter a prisão, abrindo espaço para a ocupação racional desses estabelecimentos, além de permitir que o condenado cumpra a pena próxima da sua família e da comunidade em que vive. O problema fundamental em relação aos direitos humanos, hoje, não é tanto justificá-los, nem saber quantos ou quais são esses direitos, qual a sua natureza e o seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim, qual o modo mais seguro de protegê-los, impedindo que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.

Só se alcançará, nos dias atuais, uma sociedade organizada de maneira a maximizar as relações solidárias e participativas e não-antagônicas de seus membros através da vivência e eficácia dos direitos humanos. Em um país de gritantes e profundos conflitos e desigualdades sociais, em que ainda há o desrespeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão e persistem o preconceito e a discriminação contra determinadas minorias sociais e ético-culturais, a exemplo das mulheres, idosos, deficientes físicos, homossexuais, índios, negros, encarcerados e pobres, o estudo desses conhecimentos nas escolas contribuirá para o desenvolvimento de uma nova mentalidade de tolerância, de reconhecimento da alternatividade e de respeito à diferença. A xenofobia (aversão a pessoas e coisas estrangeiras) e o racismo (qualquer doutrina que sustenta as superioridades biológicas, culturais ou morais de determinada raça ou de determinada população, povo ou grupo social ), as guerras étnicas, o preconceito e os estigmas, a segregação e a discriminação baseadas na raça, na etnia, no gênero, na idade ou na classe social são todos fenômenos amplamente disseminados no mundo, e que implicam altos graus de violência. Neste momento crucial da vida brasileira, no início desse novo século, onde os valores sociais e morais estão sendo invertidos por alguns, onde a corrupção é incentivada juntamente com o individualismo e a deslealdade, todos têm o dever de lutar com suas forças contra esses males.

Recentemente foi publicado em todos os jornais do País o relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, onde o Estado brasileiro é citado como um dos países que oferecem o mais grave quadro de violações dos direitos humanos.

A brutalidade policial, o pior sistema carcerário das Américas, ataques injustificados aos setores mais vulneráveis da população, como os camponeses, os menores destituídos, as mulheres, os homossexuais e os indígenas. Diz o relatório que o Brasil avançou muito, mas ainda deixa a desejar no oferecimento das garantias necessárias a setores importantes da população brasileira a fim de assegurar os seus direitos humanos seja por meio de suas instituições preventivas, de polícia e de justiça, seja por meio de esforços institucionais para minimizar a discriminatória desigualdade de oportunidades socioeconômicas e culturais. As desigualdades sociais devem ser eliminadas porque provocam situações de ilegalidade generalizada.

O relatório da Comissão de Direitos Humanos da OEA critica o sistema judiciário brasileiro, que sofre de lentidão, formalismos complexos e desnecessários e debilidade institucional, recomendando a simplificação e aceleramento dos procedimentos judiciais, a intensificação do Plano Nacional de Direitos Humanos, a resolução do problema do acesso à propriedade rural, a defesa efetiva dos direitos dos povos indígenas, a proteção efetiva das crianças em condições carentes e a ampliação de instituições na defesa das minorias.

Os direitos humanos devem ser respeitados em qualquer circunstância e é hipócrita quem entende que lutar por esses direitos equivale a defender bandidos, pois todos, honestos e criminosos, têm direitos e obrigações.

Consta do relatório que as condições de detenção e prisão no sistema carcerário brasileiro violam os direitos humanos, provocando uma situação de constantes rebeliões, onde, em muitos casos, os agentes do governo reagem com descaso, excessiva violência e descontrole. As prisões do mundo e, principalmente, no Brasil não proporcionam ao condenado preso a sua recuperação. São ambientes tensos, em péssimas condições humanas onde a superlotação é comum. Os direitos previstos na Lei de Execuções Penais não são aplicados na prática. Há violência contra os condenados, praticados por aqueles que têm a incumbência de custodiá-los e mesmo por outros presos. O ambiente de uma unidade prisional é muito mais propício para o desenvolvimento de valores nocivos à sociedade do que ao desenvolvimento de valores e condutas benéficas.

A Constituição Federal e as leis brasileiras contêm prescrições avançadas com relação aos direitos e ao tratamento que deve ser considerado aos presos e também no tocante ao cumprimento da pena.

Consta do relatório que 95% dos presos são indigentes e 97% são analfabetos ou semi-analfabetos. A reincidência na população carcerária é de 85% o que demonstra que as penitenciárias não estão desempenhando a função de reabilitação e ressocialização dos detentos. Ressocializar significa tornar o ser humano capaz de viver em sociedade novamente, modificando a sua conduta, socialmente aceita e não nociva à sociedade como a maioria dos homens fazem. Para ressocializar o condenado, pressupõe-se que este condenado possua um mínimo de capacidade de condições de assimilar o processo de ressocialização.

No Estado Democrático de Direito, o termo reintegração ou ressocialização deve ser entendido como fim da pena privativa de liberdade na promoção de respeito aos direitos humanos dos presos ou à dignidade da pessoa humana encarcerada para efetivar uma verdadeira inserção social do apenado.

É necessário que o condenado, embora preso sob custódia do estado, exerça uma parcela mínima, mas fundamental de sua liberdade e de sua personalidade. É imprescindível que ao cercear a liberdade do preso, não se lhe retire a sua qualidade humana.

Para uma população carcerária de aproximadamente 428 mil presos há um déficit de vagas de cerca de 200 mil. A falta de espaço, o amontoamento, a promiscuidade e a superpopulação nos estabelecimentos penitenciários e nas cadeias públicas é tamanha que o espaço físico destinado a cada preso, em alguns locais, é menos de sessenta centímetros quadrados. Os presos são amontoados, depositados, aviltados, violados, sacrificados e mal alimentados.

Este caldeirão de problemas geram rebeliões, justas diante da violação dos direitos fundamentais, onde os direitos humanos dos presidiários são completamente desrespeitados pelo Estado que tem a obrigação de fazer respeitar aqueles direitos.

Na entrevista fictícia de Marcola, publicada recentemente nos jornais, foi travado o seguinte dialogo que retrata a nossa realidade:

“Você é do PCC? Mas que isso, eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível... Vocês nunca me olharam durante décadas... e antigamente era mole resolver o problema da miséria... O diagnóstico era óbvio: migração rural, desnível de renda, poucas favelas, ralas periferias... A solução é que nunca vinham... Que fizeram? Nada.

O governo federal alguma vez alocou uma verba para nós? Nós só aparecíamos nos desabamentos no morro ou nas músicas românticas sobre a beleza dos morros no amanhecer, essas coisas... Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo... nós somos o início tardio de vossa consciência social...”

O agente penitenciário é uma categoria especial de servidor público, tendo em vista que ele é o elemento principal na recuperação e na ressocialização do apenado. No desempenho de suas tarefas, os agentes penitenciários devem respeitar e proteger a dignidade humana, bem como manter e defender os direitos humanos de todas as pessoas. Agentes penitenciários, muitas vezes, tratam os presos de maneira desumana, cruel e prepotente, o que se traduz em torturas e corrupção. Isto se deve basicamente à falta de treinamento especializado desses funcionários no que diz respeito aos direitos humanos e ao tratamento do preso, além da escassez e má remuneração dos funcionários. Outro fator que contribui é a falta de supervisão e controle adequado, o que acaba gerando impunidade.

O sistema penitenciário brasileiro padece de falta crônica de agentes carcerários, existindo, segundo o último censo penitenciário, 11 presos para cada funcionário, quando a recomendação da ONU é de que seja três presos por funcionário. Promessas existem muitas de aperfeiçoamento no treinamento dos agentes penitenciários, recrutamento e melhoria das condições de trabalho, mas quando será que isto deverá se concretizar?

Nos estabelecimentos prisionais ocorrem, em média, duas rebeliões e três fugas por dia, tendo como causas, além da superpopulação carcerária, falta de assistência jurídica, médica e religiosa, demora na tramitação judicial dos pedidos e maus tratos, principalmente praticados pelos agentes penitenciários. As rebeliões no interior dos presídios tiveram em muitas ocasiões conseqüências trágicas, custando a vida de muitos presos e de agentes prisionais. Sempre que as autoridades penitenciárias decidiram não negociar com os rebelados e esmagar as rebeliões com violência, ocorreram mortes de guardas e detentos, ao passo que quando houve negociação, o número de vítimas fatais foi bem menor. O uso de força por parte dos agentes penitenciários só deve ser aplicado em casos excepcionais, observando-se estrita obediência aos critérios de que seja proporcional ao perigo e razoavelmente necessária, de acordo com as circunstâncias, para a prevenção do delito e que seja proporcional à ameaça e ao risco. A negociação deve ser o instrumento idôneo, para o qual se deve treinar o pessoal e desenvolver técnicas e especialistas apropriados.

O propósito das penas privativas de liberdade é o de separar os indivíduos perigosos da sociedade para protegê-la contra o crime e a readaptação social dos condenados.

O preso condenado no Brasil é originário, na maioria das vezes, das classes menos favorecidas da sociedade. São pessoas que desde a tenra infância são pressionados e oprimidos pela sociedade civil, vivem nas favelas, nos morros, nas regiões mais pobres em precárias condições de vida, em meio ao esgoto, à discriminação social, à completa ausência de informações de formação educacional e escolar. Sem um background social de uma mínima formação educacional e social, o preso-condenado, mesmo antes de se tornar um delinqüente, já ocupa uma posição inferior em relação ao pacto social, do contrato social. Seus familiares também tiveram a mesma sina e a sua será possivelmente pior, pois a crise social a cada dia é mais grave.

Nossa polícia obedece aos moldes do Estado paternalista, pois foi criada em um regime totalitário com a função de reprimir e não prevenir a criminalidade, orientada contra o cidadão e não a favor do cidadão, reprime pela violência, utilizando o que combate como arma de combate, o que não se coaduna com um regime democrático.

O regime penitenciário deve empregar os meios curativos, educativos, morais, espirituais e todas as formas de assistência, que possa dispor, no intuito de reduzir o máximo possível às condições que enfraquecem o sentido de responsabilidade dos reclusos ou o respeito à dignidade de sua pessoa e a sua capacidade de readaptação social. O Judiciário não está aparelhado e vê-se em dificuldades para resolver as excessivas demandas que abarrotam o poder.

CRISE NO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Sérgio Adorno - SBPC, Ciência e Cultura vol.54 no.1 São Paulo June/Sept. 2002


Não são poucos os estudos que reconhecem a incapacidade do sistema de justiça criminal, no Brasil – agências policiais, ministério público, tribunais de Justiça e sistema penitenciário –, em conter o crime e a violência respeitados os marcos do Estado democrático de Direito. O crime cresceu e mudou de qualidade; porém, o sistema de Justiça permaneceu operando como há três ou quatro décadas. Em outras palavras, aumentou sobremodo o fosso entre a evolução da criminalidade e da violência e a capacidade do Estado de impor lei e ordem.

Desde a década de 1980, o acúmulo histórico de problemas na área se acentuou, em parte devido aos novos desafios político-institucionais propostos pela transição democrática. Por um lado, os governos federal e estaduais, pressionados por correntes de opinião pública sequiosas da imediata remoção do "entulho" autoritário, tiveram que promover em curto espaço de tempo a desmontagem dos aparelhos repressivos associados ao regime militar, em especial os paramilitares. Tarefa difícil; reclamava, antes de tudo, pertinaz controle sobre os abusos de poder cometidos por agentes públicos (policiais militares nas ruas, nas habitações populares e nas instituições de reparação social; policiais civis nas delegacias e distritos policiais; guardas nas instituições carcerárias). Por outro, os governos civis pós-ditadura demoraram em responder com eficiência ao crescimento e à mudança do perfil da criminalidade urbana violenta, um cenário que adentrou os anos 90.

A despeito dos investimentos em segurança pública, ora crescentes ora decrescentes, sobretudo em recursos materiais, são notórias as dificuldades e desafios enfrentados pelo poder público em suas tarefas constitucionais de deter o monopólio estatal da violência, mesmo após quase duas décadas de retorno ao Estado democrático de Direito. Seus sintomas contemporâneos radicam, por exemplo, na sucessão de rebeliões nas prisões organizadas por dirigentes do crime organizado, como o Comando Vermelho e Terceiro Comando, no Rio de Janeiro; e o Primeiro Comando da Capital, em São Paulo, este responsável pelo motim simultâneo de vinte e nove grandes prisões, no Estado de São Paulo, em fevereiro de 2001. Do mesmo modo, cada vez mais é flagrante a ousadia no resgate de presos. Ademais, a existência de áreas, na maioria das metrópoles brasileiras, onde prevalecem as regras ditadas pelo tráfico de drogas sugere a constituição de quistos urbanos isentos da aplicação das leis.

A face visível desta crise do sistema de Justiça criminal é, sem dúvida, a impunidade penal(1). Ao lado do sentimento coletivo, amplamente difundido entre cidadãos comuns, de que os crimes cresceram, e vem crescendo e se tornando cada vez mais violentos, há igualmente o sentimento de que os crimes não são punidos; ou, quando o são, não o são com o rigor de que seria esperado diante da gravidade dos crimes que têm maior repercussão na opinião pública. Mas, há também um outro lado da questão. Se muitos crimes deixam de merecer sanções penais, quaisquer que sejam, isso não significa dizer que a Justiça penal é pouco rigorosa. As sanções alcançam preferencialmente grupos sociais singulares, como negros e migrantes, comparativamente às sanções aplicadas a cidadãos brancos, procedentes das classes média e alta da sociedade(2). A imagem flagrante do sistema de Justiça criminal é de um funil: largo na base – área na qual os crimes são oficialmente detectados – e estreito no gargalo, região onde se situam aqueles crimes cujos autores chegaram a ser processados e por fim acabaram sendo condenados.

Não é certamente um cenário próprio à sociedade brasileira. Em outras sociedades do mundo ocidental essa imagem é também presente, em particular nos Estados Unidos; porém, singular à sociedade brasileira é a magnitude do funil: extremamente largo na base, excessivamente estreito no gargalo. Os poucos estudos disponíveis(3) – sugerem que as taxas de impunidade são mais elevadas no Brasil do que em outros países, como França(4), Inglaterra(5), Estados Unidos(6). A carência de dados estatísticos e de levantamentos sistemáticos periódicos impede o conhecimento da efetiva magnitude e extensão da impunidade penal no Brasil. A despeito destas limitações, algumas avaliações parciais já indicam algo a respeito. Crimes como furtos ou que compreendem a chamada pequena criminalidade, em regra, não chegam a ser investigados, sobretudo se a autoria for desconhecida. Mesmo casos mais graves, como roubos, tráfico de drogas e até homicídios, compõem as chamadas "áreas de exclusão penal". Há suspeitas de que as taxas de impunidade sejam proporcionalmente mais elevadas para as graves violações de direitos humanos, tais como: homicídios praticados pela polícia, por grupos de patrulha privada, por esquadrões da morte e/ou grupos de extermínio; ou ainda homicídios consumados durante linchamentos e naqueles casos que envolvem trabalhadores rurais e lideranças sindicais. Do mesmo modo, parecem altas as taxas de impunidade para crimes do colarinho branco cometidos por cidadãos procedentes das classes médias e altas da sociedade.

Os poucos dados disponíveis são surpreendentes. No Estado de São Paulo, em 1970, do total de pessoas processadas, 75% foram denunciadas; 27% condenadas; e 48% absolvidas. Em 1982, essas proporções reduziram-se respectivamente para 65%, 22% e 43%. Enquanto a instauração de inquéritos penais, no período de 1970-1982, cresceu 191,4% e as ações penais, 148,5%; os inquéritos arquivados cresceram 326,2%. Do mesmo modo, a extinção de punibilidade cresceu de 3,4% para 6,3%(7). No mesmo período, para o Estado do Rio de Janeiro, um estudo sobre a evolução do crime(8) observou que as chances de condenação, em crimes contra o patrimônio, vinha declinando: em 1976, era de 0,0506; em 1980, 0428. Vale dizer, no início do período, para cada cem crimes contra o patrimônio, condenavam-se cinco infratores; poucos anos mais tarde, quatro infratores eram condenados. O mesmo estudo constatou ainda que o crescimento em 50% da criminalidade urbana, entre 1977 e 1986, foi acompanhado do declínio, em 27,4%, das taxas de aprisionamento (população prisional/100.000 habitantes).

Para a década de 1990, o quadro não é menos grave. Alguns anos mais tarde, Soares e outros(9) atualizaram as análises sobre a evolução da violência no Estado e Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Seus resultados indicam, para o município do Rio de Janeiro, tão somente 8,1% dos inquéritos sobre homicídios dolosos (isto é, intencionais) e 8,9% dos inquéritos sobre roubos seguidos de morte (modalidade mais conhecida como latrocínio) foram convertidos em processos penais, no ano de 1992. Nesse mesmo ano, 92% dos crimes dolosos contra a vida deixaram de merecer alguma sanção penal. Para o município de São Paulo, Castro(10), observando homicídios praticados contra crianças e adolescentes, no ano de 1991, constatou que apenas 1,72% de todos os crimes denunciados alcançaram uma sentença condenatória, transitada em julgado, no final do período observado, o ano de 1994. Essa tendência parece ter-se mantido ao longo da década. Em 1999, transitaram pelo I Tribunal de Júri da capital cerca de 10 mil processos instaurados para apuração de responsabilidade penal em homicídios. Em torno de 70%, os processos foram arquivados(11).

A conseqüência mais grave deste processo em cadeia é a descrença dos cidadãos nas instituições promotoras de justiça, em especial encarregadas de distribuir e aplicar sanções para os autores de crime e de violência. Cada vez mais descrentes na intervenção saneadora do poder público, os cidadãos buscam saídas. Aqueles que dispõem de recursos apelam, cada vez mais, para o mercado de segurança privada, um segmento que vem crescendo há, pelo menos, duas décadas. Em contrapartida, a grande maioria da população urbana depende de guardas privados sem profissionalização, apóia-se perversamente na "proteção" oferecida por traficantes locais ou procura resolver suas pendências e conflitos por conta própria. Tanto num como noutro caso, seus resultados contribuem ainda mais para enfraquecer a busca de soluções por intermédio das leis e do funcionamento do sistema de Justiça criminal.


Sérgio Adorno é professor associado do Departamento de Sociologia da USP, coordenador do NEV/USP, diretor de educação do projeto Cepid/Fapesp e coordenador do projeto Cepid, um estudo sobre impunidade no município de São Paulo.


Referências Bibliográficas

1 Dahrendorf, R. Lei e ordem. Brasília: Instituto Tancredo Neves, 1987. [ Links ]

2 Adorno, S. "Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo". Novos Estudos. Cebrap. São Paulo, Cebrap, 43: 45-63, novembro 1995. [ Links ] Costa, C. A R. da (1995). Cor e crime: estudo e análise da justiça no Rio de Janeiro (1900-1930). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. [ Links ] Vargas, J. (2000). Crimes sexuais e sistema de justiça. São Paulo: IBCrim, 1995. [ Links ]

3 Soares, L. E. e outros. Crime e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. [ Links ] Adorno, S. S. Cidadania e administração da Justiça criminal. In: Diniz, E.; Leite Lopes, S. E., Prandi, R. (orgs.). O Brasil no rastro da crise. Anuário de Antropologia, Política e Sociologia. São Paulo: Anpocs/IPEA, Hucitec, 1994. p. 304-27. [ Links ] Adorno, S. "Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo". Novos Estudos. Cebrap. São Paulo, Cebrap, 43: 45-63, novembro, 1995. [ Links ] Pinheiro, S.; Adorno, S.; Cardia, N. Continuidade autoritária e construção da democracia. Relatório final de pesquisa. São Paulo: NEV/ USP, 4 v. (Fapesp), 1999. In: www.nev.prp.usp.br. [ Links ] Castro, M.M. P. de. Vidas sem valor: um estudo sobre os homicídios de crianças e adolescentes e a atuação das instituições de segurança e justiça. Tese de Doutorado em Sociologia. PPGS/FFLCH-USP, 1996, p. 279. [ Links ]

4 Robert, P.; Aubusson de Cavarlay, B.; Pottier, M. L.; Tournier, P. Les comptes du crime. Les délinquences en France et leurs mesures. Paris: LHarmattan, 1994. [ Links ]

5 Jefferson, T. e Shapland, J. Criminal Justice: order and control. British Journal of Criminology, 1994, 34(3): 265-290. [ Links ]

6 Gurr, T.R. Violence in America: the history of crime (violence, cooperation, peace), an International Series, v. 1. Newbury Park: Sage Publications, 2v., 1989. [ Links ] Donzinger, S., ed. The real war on crime. New York: The National Criminal Justice Commission, 1996. [ Links ]

7 Adorno, S. S. "Cidadania e administração da Justiça criminal". In: Diniz, E.; Leite Lopes, S. E Prandi, R. (orgs). O Brasil no rastro da crise. Anuário de Antropologia, Política e Sociologia. São Paulo: Anpocs/IPEA, Hucitec, 1994. p. 304-27. [ Links ]

8 Coelho, E. C. "A criminalidade urbana violenta". Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Iuperj, 1988, 31(2): 145-83. [ Links ]

9 Soares, L. E. e outros. Crime e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. [ Links ]

10 Castro, M.M. P. de. Vidas sem valor: um estudo sobre os homicídios de crianças e adolescentes e a atuação das instituições de segurança e justiça. Tese de Doutorado em Sociologia. 1996, PPGS/FFLCH-USP, 279p. [ Links ]

11 O Estado de S. Paulo, editorial, 22/05/2001. [ Links ]

domingo, 12 de fevereiro de 2012

O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO

Saulo Antônio Mansur - Governador Valadares(MG)- FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA - 28/03/2007

O ordenamento jurídico brasileiro é composto por uma série de micros-sistemas normativos, cada um voltado para disciplinar determinada seara de atuação social.

Assim temos os Direito Civil, Empresarial e Trabalhista (regulam, em regra, as relações privadas), bem como os Direitos Constitucional, Administrativo, Tributário, Previdenciário, Processual, Ambiental, dentre outros, que moldam as condutas sociais onde o interesse público estatal possui uma maior atenção em evitar o descumprimento de tais preceitos.

Ao conjunto de normas impostas coercitivamente pelo Estado com a finalidade de manter a paz social, definindo crimes e impondo sanções ou medidas de segurança, denomina-se Direito Penal.

Esse ramo do Direito é chamado pelos penalistas modernos como a "última razão", ou seja, só deve atuar quando as outras formas jurídicas de controle social, leia-se, outros ramos do Direito, foram ineficazes em evitar uma conduta contrária ao ordenamento jurídico vigente.

Evidentemente que o Direito Penal não regula todos os comportamentos sociais, bem como nem pode, sob pena de cair em descrédito. Reserva a esta Ciência o controle das atividades mais nocivas que um ser humano pode praticar em sociedade -Princípio do Direito Penal Mínimo.

Contudo, a aplicação do Direito Criminal está jungida a uma teia organizacional composta de vários órgãos chamada de Sistema de Justiça Criminal.

O Sistema de Justiça Criminal deve ser considerado sob dois ângulos: "lato sensu" e "estricto senso". O primeiro leva em consideração todas as medidas estatais preventivas da criminalidade, como a distribuição da renda, educação, saúde, saneamento básico, emprego etc, em síntese, tem enfoque sociológico. O segundo é o que interessa no momento.

Com o advento da Constituição Federal de 1988 instaurou-se no Brasil um novo modelo de justiça criminal, cujo mecanismo de funcionamento é dividido em duas fases. A primeira é a administrativa, chamada pelos aplicadores do Direito como extrajudicial, e que tem início com o trabalho ostensivo/preventivo da polícia uniformizada, com escopo de impedir a prática de delitos. Nessa fase, quando o trabalho preventivo não é capaz de evitar o crime, cabe ao Estado, atendidas algumas exigências legais, o dever de descobrir o autor do ilícito para que o mesmo seja submetido a julgamento, eis que é "vedado ao particular fazer justiça com as próprias mãos".

A tarefa investigativa é consagrada nas Constituição da República e dos estados-membros à Polícia Judiciária (Polícia Civil nos Estados Membros e Federal, na União), através do procedimento denominado Inquérito Policial.

Nesse instrumento investigatório são produzidas provas que visam elucidar a autoria e materialidade da infração objeto de investigação, tais como depoimentos testemunhais, declarações de vitimas, reconstituição de crimes, confissões de suspeitos, apreensão de instrumentos e/ou objetos e/ou produtos de crimes, exames de necrópsia, reconhecimento de pessoas, acareações, dentre outras.

Toda esta colheita probatória é presidida por profissional bacharel em Direito, previamente aprovado em concurso público de provas e de títulos, denominado Delegado de Polícia, que tem por finalidade gerenciar esta produção pluricientífica, com lastro na legislação em vigor e, principalmente, atento ao preceitos estatuídos na Constituição Federal.

Confeccionado o caderno policial, a polícia judiciária, após o delegado de polícia realizar a subsunção cognitiva do fato criminoso à norma penal, dá por termo as investigações, indiciando formalmente o investigado, que passa então a figurar como indiciado.

Concluídas as investigações o Inquérito Policial é remetido à "Justiça", terminando-se assim a fase administrativa do Sistema de Justiça Criminal. Na "Justiça" -Poder Judiciário -, inicia-se a segunda fase, denominada judicial, onde a vitima e/ou seu representante legal, bem como o Ministério Público, possuem o direito -para o parquet dever - de promover a ação penal contra o autor daquele delito apurado no Inquérito Policial. Ao Juiz cabe decidir pela absolvição ou condenação do acusado, conforme as provas dos autos.

Tanto na fase administrativa como na judicial o acusado de um crime tem o seu direito à liberdade ameaçado. É para não ferir os Princípios da Igualdade Formal e da Dignidade da Pessoa Humana que as autoridades que presidem a colheita de provas de um determinado crime -Delegado de Polícia na fase administrativa, e Juiz, na fase judicial - devem assegurar a produção de todas aquelas que tenham alguma relação com o fato delituoso, sejam elas prejudiciais ou benéficas ao imputado.

Tanto é assim que a doutrina e a jurisprudência brasileira é quase uníssona no sentido de que as únicas autoridades existentes no Sistema de Justiça Criminal são os Delegados de Polícia e os Juízes, pois estas devem se pautar pela imparcialidade quando no desempenho de suas atribuições legais. Os outros órgãos estatais que por ventura venham a atuar na repressão criminal ou são partes, tendo interesse em uma determinada decisão -Ministério Público, p.ex., - ou são testemunhas favoráveis ou contrárias aos interesses do Estado acusador (policiais militares, bombeiros, agentes penitenciários, etc.).

Vários estudiosos do fenômeno da criminalidade e do Sistema de Justiça Criminal consideram um equívoco a Polícia Judiciária pertencer à estrutura do Poder Executivo, pois é exatamente este Poder que exerce as atribuições de acusador na esfera criminal, através dos Promotores de Justiça, não sendo coerente que as autoridades que investigam -Delegados da Polícia Civil e Federal -, pertençam à mesma estrutura que acusa. Assim, existem estudiosos que defendem a Polícia Judiciária pertencente à estrutura do Poder Judiciário.

Durante a década de 1990, como os índices de criminalidades na maior parte do Brasil atingiam níveis aceitáveis, não se deu a devida atenção ao Sistema de Justiça Criminal. Com o crescimento da criminalidade nesta década as entidades políticas, principalmente a União e os Estados-Membros, sentiram a necessidade de implementar medidas no campo da Justiça Criminal, pois os índices atingiram níveis inaceitáveis. Depararam-se, no entanto, com o sucateamento do Sistema de Justiça Criminal (polícias judiciárias, estabelecimentos prisionais etc).

Percebeu-se que o "elo de ligação" entre as fases administrativa e judicial da persecução penal encontrava-se, no aspecto estrutural (recursos humanos e materiais), em dissonância com a demanda social.

Algumas medidas já começaram a serem adotadas no sentido de "recuperar o tempo perdido", no que pertine ao aperfeiçoamento do Sistema de Justiça Criminal. São políticas que apesar de tardias são bem vindas e necessárias, satisfazendo uma exigência da população. Contudo, não se pode perder de vista os direitos constitucionais assegurados aos cidadãos, sejam eles quem for, sob pena de que na "ânsia de reduzirmos a criminalidade a qualquer custo", retornemos ao período da Inquisição.


Saulo Antônio Mansur, Professor de Direito Penal, Pós-graduado em Direito Público e Delegado de Polícia em Minas Gerais

O SISTEMA SEGUNDO A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

TEXTO ORIGINAL - Ao redigirem o título V da Constituição Brasileira que rege sobre a "defesa do Estado e das Instituições democráticas (art. 136 ao 144), os constituintes criaram:

MEDIDAS DE EXCEÇÃO: foram estabelecidas na constituição federal duas medidas para casos de ameaças à ordem pública e à estabilidade institucional: o Estado de Defesa e o Estado de Sítio:

- ESTADO DE DEFESA: Decretado pelo Presidente após ouvir o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional para "preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave ou iminente instabilidade ou atingidas por calamidades de grande proporções na natureza" (caput do art. 136). Tempo nunca superior a 30 dias podendo ser prorrogado.

- ESTADO DE SÍTIO: Decretado pelo Presidente após ouvir os Conselhos e obter a autorização do Congresso Nacional, nos casos de (caput do art. 137): "I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira."

FORÇAS ARMADAS: constituídas pela Marinha, Exército e Aeronáutica são destinadas à "defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por inciativa destes, da lei e da ordem. (caput artigo 142).

A SEGURANÇA PÚBLICA: a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos(caput art 144):

- POLÍCIA FEDERAL;
- POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL;
- POLÍCIA FERROVIÁRIA FEDERAL;
- POLÍCIAS CIVIS;
- POLÍCIAS MILITARES E CORPOS DE BOMBEIROS MILITARES.


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA:

1. Por que as "medidas de exceção" não são usadas para salvaguardar as Forças Armadas no emprego da lei e da ordem diante de ameaças à ordem pública e à paz social e nas calamidades de grandes proporções? Ou o Congresso não que ficar funcionando durante a vigência da medida, como manda a constituição? Ou o Presidente vem negligenciando ao colocar as Forças Armadas na defesa da ordem pública e da paz social sem a devida proteção da lei?

2. A propósito: será que, sozinhas, as forças armadas e as forças policiais têm as reais capacidades para assegurar a ordem pública num país democrático? Num regime totalitário, acredito que sim, pois o controle do ditador se impõe através da força armada. Mas num país democrático, é preciso compor um SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL envolvendo as forças policiais, o Poder Judiciário (capítulo III do artigo 92 ao 126), as funções essenciais à justiça abrangendo o Ministério Público, a Procuradoria e a Defensoria Pública (art 127 ao 135), mais os órgãos de execução penal. Sem a integração destes, não se garante continuidade, eficácia ou resultados positivos na preservação da ordem pública e da incolumidades das pessoas e do patrimônio.

3. Quais as razões que levaram os constituintes a desprezarem a importância do Poder Judiciário (aplicação das leis), do Ministério Público, da Procuradoria, da Defensoria Pública (defensor de direitos)e do Setor Prisional (guarda e custódia de apenados) na constituição de um SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL?