quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A CAPACIDADE PREVENTICA DO SJC BRASILEIRO

A CAPACIDADE PREVENTIVA DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO: A INTERFACE ENTRE O DIREITO PENAL E ABORDAGENS CRIMINOLÓGICAS - Daniel Gustavo Gonçalves Caetano e Frederico de Carvalho Figueiredo


PALAVRAS-CHAVE: Sistema de justiça criminal, prevenção, segurança pública, nível microssocial, nível macrossocial.

1 INTRODUÇÃO

O tema da segurança pública é um dos assuntos de maior importância quando se pensa na atuação do Estado perante a sociedade. Junto a fatores como saúde, educação e emprego, a segurança pública é um indicador da qualidade de vida dos cidadãos.

Nesse aspecto, o Direito Penal, amparado pelo Sistema de Justiça Criminal, ocupa posição de destaque quando se trata, não só da punição, mas da prevenção da criminalidade, já que, para proteger um bem jurídico, é preciso evitar que ele seja lesado. Contudo, embora alguns doutrinadores das ciências jurídicas possam relegar à pena a função de preventiva do Direito Penal, há inúmeras controvérsias a respeito dos reais fins da pena.

Por outro lado, uma sólida política de segurança pública deve ser formulada com base em dados fornecidos principalmente pelo Sistema de Justiça Criminal, o que possibilitará o entendimento das causas da violência e, como corolário, a aplicação de medidas mais adequadas ao caso brasileiro. Não há como fundamentar uma medida de segurança e decidir sobre uma abordagem estatal sem informações sobre os tipos de crimes mais freqüentes, as localidades em que ocorrem, quem são as principais vítimas, quem são os principais infratores, dentre outras.

No entanto, a mera persecução das causas da violência pode não conduzir a um resultado eficiente, pois o crime é um fenômeno social complexo, que pode ser determinado por uma quantidade de fatores sociais, culturais, econômicos ou de caráter interno do indivíduo. Nesse sentido, a adoção de paradigmas de análise micro ou macrossociais possibilitam a determinação de uma unidade de estudo, norteando que tipo de investigação deve ser feito para lastrear as políticas públicas de segurança.

Através desses paradigmas, o Sistema de Justiça tem a possibilidade de atuar preventivamente, seja focando causas ambientais ou socioeconômicas, seja agindo caso a caso na determinação de penas e medidas de reinserção que evitem e reincidência. Entretanto, suas possibilidades são reduzidas pelo modo de operar dos órgãos que o compõem, pois além de defasagens técnicas, o viés tomado pela legislação penal determina uma atuação microssocial, voltada para o tratamento individual de cada crime.

Assim, pode-se dizer que o objetivo geral desse artigo é examinar em que medida se instaura a capacidade preventiva do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro, se consideradas as causas do crime. Dessa forma, seus objetivos específicos são:

• Demonstrar como se estrutura o Sistema de Justiça Criminal no Brasil e quais são suas funções;

• Identificar sob quais paradigmas se torna possível a análise das causas da criminalidade;

• Listar as teorias a respeito das causas da violência;

• Analisar o paradigma atualmente utilizado pelo sistema criminal para tratar as ocorrências criminais;

• Avaliar a atuação atual e real do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro;

• Analisar, a partir do cumprimento dos objetivos supracitados, a capacidade preventiva do Sistema de Justiça Criminal Brasileiro.

2 A ESTRUTURAÇÃO DA JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRA

Para atender as demandas sociais, o ordenamento jurídico brasileiro é dividido em vários micro-sistemas normativos, determinados em razão da matéria que disciplinam. Por isso existem diferentes searas de atuação do Direito, como Civil, Trabalhista e Penal. Este último é composto por normas impostas pelo Estado mediante coerção, a fim de manter a paz social. Cabe ao Direito Penal, portanto, a definição crimes, a imposição de sanções ou medidas de segurança. Sua atuação, entretanto, está condicionada à atuação de uma série de organizações e órgãos, chamados, em conjunto, de Sistema de Justiça Criminal.

A partir da Constituição Federal de 1988, o modelo de justiça Criminal passou a ser dividido em duas fases distintas: fase administrativa e fase judicial. A primeira, também chamada extrajudicial, tem início, de acordo com Sapori (2007), no trabalho ostensivo da polícia uniformizada, que tem a finalidade de impedir a prática de crimes e delitos. Como muitas vezes seu trabalho falha em sentido preventivo, cabe ao Estado o dever de identificar o autor do ilícito para sua submetê-lo ao poder judiciário.

Essa tarefa de investigação é feita através do Inquérito Policial, que é presidido pelo Delegado de Polícia com a finalidade de gerenciar esta produção investigativa, pautada na legislação em vigor. Estando o inquérito policial pronto, o investigado é indiciado formalmente e os resultados do inquérito são remetidos à “Justiça” (SAPORI, 2007).

No Poder Judiciário inicia-se a segunda fase, denominada judicial, em que a vítima, seu representante legal ou o Ministério Público podem promover a ação penal contra o indiciado. Para Sapori (2007), cabe ao Juíz, então, decidir pela absolvição ou condenação do acusado, conforme prova dos autos. Nessa fase também aparece a figura da Defensoria Pública, cuja função é garantir a ampla defesa do indiciado. Há que se citar, ainda o sistema prisional, utilizado em caso de condenação a penas de reclusão ou detenção.

O Sistema de Justiça criminal é, portanto, o meio pelo qual o Direito Penal exerce suas prerrogativas básicas de proteção aos valores fundamentais para a subsistência social, os chamados “bens jurídicos”, tais como a vida, a saúde e o patrimônio.

Conforme Capéz (2006), essas prerrogativas são exercidas pela intimidação coletiva, que utiliza do temor ao risco da sanção penal como instrumento de prevenção e, sobretudo, pelo cumprimento dos compromissos éticos entre o indivíduo e o Estado, gerando, assim, o respeito às normas jurídicas em razão de uma convicção da sua necessidade e justiça, e não somente pelo receio de punição.

Quando o ordenamento jurídico prescreve uma sanção à violação de deveres ético-sociais, induz a formação de um juízo ético dos cidadãos, delineando os valores essenciais ao convívio social. Assim, sempre que um bem jurídico é lesado e o sistema de justiça trata de efetivar a sanção prevista para a transgressão existente no caso concreto, mostra à coletividade em que medida valoriza o interesse que foi violado. Da mesma forma, afirma Capéz (2006), quando o poder judiciário é lento, omisso ou injusto, incute na consciência comunitária a irrelevância de valores éticos e sociais, conduzindo a um descrédito da justiça criminal e propiciando o desrespeito a tais valores.

Neste último caso, o indivíduo tende a descumprimento da lei penal, independente de seu recrudescimento. Assim, o que poderia ser um dever ético e absoluto torna-se relativo a cada caso concreto, e a ineficiência da justiça criminal torna-se um meio propagador da pouca solidez de deveres sociais elementares, reduzindo a importância de certos valores éticos. Interpretando Welzel (1997), o direito penal, na medida em que tutela bens jurídicos concretamente, como proteção individual à pessoa ou à sua propriedade, deixa de assegurar a real observância de valores coletivos fundamentais à manutenção da segurança social.

3 A PREVENÇÃO NO DIREITO PENAL

Em sentido mais amplo, também seria um dos objetos de ação da justiça criminal a aplicação de políticas de segurança pública, especialmente no que tange as polícias militar e civil, para então, obter atuação preventiva em relação à criminalidade. Por outro lado, a atuação preventiva é determinada por meio de diretrizes definidas pelo Direito Penal, já que, como diria Welzel (1997), a função primordial deste ramo do Direito é de natureza ético-social e de caráter positivo.

3.1 Dos fins da pena

Tratando do caráter preventivo do Direito Penal, discute-se a respeito das funções da pena, já que parte da doutrina identifica como uma de suas prerrogativas a capacidade educativa e conseqüentemente preventiva. Entretanto, há diversas teorias sobre os fins da pena, e sua função não é definida sem controvérsias.

De acordo com as chamadas teorias absolutas, a pena tem um caráter retributivo e expiatório. Seus principais defensores, Kant e Hegel, deram, respectivamente, funções de ordem ética e de ordem jurídica à pena. Nas palavras de Bitencourt (1999), “segundo o esquema retribucionista, é atribuída à pena, exclusivamente, a difícil incumbência de realizar a Justiça. A pena tem como fim fazer Justiça, nada mais.” Dessa forma, por ser portador de um livre arbítrio, a culpa do autor de um crime deve ser compensada pela imposição de um mal, traduzido na figura da pena.

Tal teoria, contudo, foi duramente criticada, sendo um de seus mais célebres críticos Claus Roxin. Para o jusfilósofo, se o significado da pena assenta na culpa humana, esta não pode ser compensada somente pelo Estado, pois se manifesta de diferentes formas que não somente a jurídica. E, tratando-se da culpa jurídica, há que se considerar que sua existência gera diferentes conseqüências que não só a pena, como o dever de indenizar, por exemplo. Além disso, não racionalmente plausível pagar um mal cometido acrescentando-lhe um segundo mal, o que aproxima a pena da vingança privada, somente presente e aceita em atos de fé, e não cientificamente (ROXIN, 1986).

Por outro lado, nas teorias de prevenção geral, em que se destacam doutrinadores como Beccaria e Schopenhauer, a ameaça da pena cria uma intimidação geral de todos os membros da comunidade jurídica. Roxin (1986) novamente contradiz tal teoria, já que, para ele, entre várias objeções, a pretensão de intimidar usando-se da pena deve ser acompanhada do reforço de sua aplicação, que deve ser tão dura quanto possível. E, ainda que a pena tenha aplicação justa e rápida, não se explica a ineficácia da intimidação em certos grupos de crimes e de delinqüentes.

Já as teorias de prevenção especial, postuladas da moderna política criminal, a prevenção do delito é tratada por meio da atuação sobre o autor. Em outras palavras, por meio da atuação exclusiva sobre o criminoso, busca-se evitar que ele volte a delinqüir. Bitencourt (1999) demonstra que a vertente de prevenção especial é defendida por várias correntes em todo o mundo. Na França e na Itália, ela é traduzida pela teoria da Nova Defesa Social, pela qual uma pena não deve ser postulada a cada delito, mas a cada pessoa; na Alemanha, é conhecida pelas teorias de Von Lizt; na Espanha, pelos estudos da Escola Correlacionista.

Maurach (1995) afirma, entretanto que independente das diferenças entre essas diversas correntes, o ponto comum entre elas é a influência inibitória que a pena tem sobre seu autor, sendo essa sua própria finalidade, que é subdividida em três funções: intimidação (prevenção individual), ressocialização (correção) e asseguramento (recuperação). Tais funções podem ser consideradas objetivos positivos na medida em que visam reincorporar o autor à comunidade jurídica.

Bitencourt (1999) assinala, assim, que a prevenção especial não busca a intimidação do grupo social, nem retribuição do fato praticado, mas tão somente a prevenção da reincidência, permitindo uma melhor individualização do remédio penal.

A crítica feita por Roxin (1986), em se tratando desta teoria é que, se a pena tem a finalidade de prevenir que o autor volte a delinqüir, ela não deveria ser aplicada nos casos em que não houvesse perigo de reincidência.

Outras teorias surgiram a respeito da finalidade da pena, mas em muita se pareciam com as citadas anteriormente e receberam, logicamente, críticas muito semelhantes. Analisando-se então, as tentativas de explicar a própria pena como o fator preventivo existente no Direito Penal, averigua-se que nenhuma delas foi sólida o suficiente para mostrar a representatividade da pena como item de prevenção. Além disso, ainda que teoricamente a pena pudesse ter caráter preventivo, a omissão do Estado quando necessária sua aplicação gera um descrédito coletivo em relação à possibilidade de punição à transgressão de uma norma. Nesse caso, o Sistema de Justiça Criminal deveria exercer um papel de extrema importância, não fosse a impressão de reinante impunidade uma de suas principais características. Nos estudos de Marcão e Marcon (2001), por exemplo, são elencadas uma série de causas supralegais da impunidade, como o desaparelhamento do Poder Judiciário, a insuficiência de juízes e de recursos, a lentidão da Justiça que provoca prescrição retroativa ou intercorrente dos crimes, dentre outros. A pena, então, decididamente não exerce, no Brasil, qualquer caráter preventivo, seja por questões fundamentais ou pela dificuldade de sua aplicação.

Assim, ficaria a cargo do Estado a melhor utilização do Sistema de Justiça Criminal para a prevenção da criminalidade. Beato (2010) ressalta que a compreensão das causas da violência e da criminalidade é o que possibilita a formulação de previsões mais acertadas, e sendo assim, de medidas de segurança pública que representem reais intervenções em aspectos decisivos para o controle de delitos.

3.2 Causas da violência

Admitindo-se como premissa que a atuação do Estado na prevenção de crimes deve estar pausada por um processo científico de determinação das causas que levam à violência, há a necessidade de revisitar as teorias a respeito do tema, a fim de se avaliar a viabilidade dos métodos de atuação. Para essa compreensão, no entanto, há uma gama de correntes que avaliam as possíveis motivações da violência ou do cometimento de crimes. Tais correntes representam paradigmas que podem ser adotados pelo Estado na fundamentação e formulação de políticas públicas de segurança.

Nos principais estudos a respeito do tema nota-se uma inevitável e necessária veia sociológica, por vezes, negligenciada no âmbito jurídico, pois, conforme Beato (2010), a evolução das teorias sobre as causas da violência se desenvolveu em constante diálogo com as ciências sociais. Para o autor, as questões relativas à criminalidade estão comumente relacionadas aos problemas da ordem e da ação no âmbito social.

Sendo a sociedade um fenômeno emergente da implementação de obrigações sociais criadas por seus próprios membros, a adesão de cada indivíduo aos valores e normas pré-estabelecidos se dá mediante a perfeita socialização do sujeito (DURKHEIM; PARSONS apud BEATO, 2010). As normas legais, entretanto, determinam condutas individuais através das sanções e do controle social. Com isso, aplicação da lei caso a caso gera conseqüências que devem ser, para Beato (2010), analisadas num nível micro de análise, tomando a natureza das leis penais como regra de decisão e comportamento, podendo-se, então, alcançar as condições de seu uso pelos membros da sociedade.

O nível microssocial, nas linhas teóricas de Short (1997), enfoca a interação de indivíduos no decurso de um acontecimento criminal, como é o caso da vítima e do delinquente. Assim, a atenção é dirigida para o desenrolar dos acontecimentos, para a interação das partes envolvidas nos acontecimentos e como ela molda o comportamento e os resultados comportamentais, tais como a violência.

Através de um paradigma macrossocial, por outro lado, busca-se identificar os fatores de risco que levam ao crime, a exemplo da concentração de pobreza, das estruturas de oportunidade, do declínio do capital social, a disposição de populações excluídas ou a socialização de gênero. Para Short (1997) o nível macrossocial destina-se a entender o papel das organizações, sistemas sociais, estruturas sociais e culturas que produzem diferentes taxas de comportamento violento. Estão inseridos no âmbito macrossocial, então, os estudos sobre as organizações, os sistemas sociais, forças econômicas, e subculturas.

O autor afirma que a determinação do paradigma a ser utilizado facilita o entendimento das causas da violência, mas que nenhum deles deve ser tomado separadamente.

Beato (2010) menciona, ainda com relação aos aspectos macrossociais, os fatores de natureza ambiental e situacional que podem estimular a ocorrência de crimes, conforme preconizado pela tradição sociológica da Escola de Chicago.

No Brasil, as perspectivas a respeito da criminalidade passam pela análise da quantidade de crimes que ficam impunes, como dito em parágrafos anteriores. Pelos estudos de Edmundo Campos (1980) a impunidade estende-se a todas as classes sociais, inclusive às elites, denotando, assim, a existência de fatores institucionais que influem nas taxas de criminalidade.

Ainda inserida no paradigma macrossocial, a discussão sobre as causas da violência foi conduzida por Merton (1957) à relação entre a criminalidade e às situações de anomia, ou seja, situações em que o Estado não alcança um contingente social, perdendo o controle sobre ele. Em outras palavras, a anomia é uma resposta individual a situações em que há uma incongruência entre metas culturalmente estabelecidas e os meios legítimos para atingi-las. A partir dessa interpretação, pode-se entender que crimes são cometidos por indivíduos que não conseguiriam alcançar suas aspirações através dos meios que lhe foram fornecidos pela sociedade. Assim, os ideais de sucesso de uma sociedade passam a ditar o comportamento em várias esferas sociais.

Essa tese, entretanto, mostra-se insuficiente, conforme enuncia Beato (2010), no sentido de fornecer explicações sobre a existência de aspirações únicas e universais e à suposição de que as habilidades para crime sejam inatas. Para o autor, há demasiadas controvérsias na doutrina sociológica a respeito da existência de valores universais e inerentes a todos os indivíduos. Além disso, a opção por uma carreira criminosa não feita individualmente, mas a partir de seleções pautadas em processos de socialização, valores e aprendizado de habilidades. Não se pode inferir aqui que todas as pessoas que tiverem contato com um criminoso se tornarão criminosas, pois como afirmou Sutherland (1993), o comportamento é determinado por uma associação diferencial, não apenas por meio de um simples contato com aqueles que violaram a lei (SUTHERLAND apud BEATO, 2010). Explicando melhor, Coleman (2005) afirma que o comportamento criminoso é aprendido, como qualquer outro comportamento, e junto com esse aprendizado incorporam-se as técnicas do crime e as motivações favoráveis a esse comportamento.

Beato (2010) traz, ainda, elucidações críticas sobre teorias culturalistas, que “repousam sobre o falso suposto da “socialização completa” dos criminosos e jovens envolvidos com atividades ilícitas”. Conforme o autor, a idéia de que moradores de uma mesma comunidade compartilham acriticamente de uma série de valores do crime faz concluir que existem não somente indivíduos delinqüentes, mas comunidades inteiras em delinqüência. Teorias dessa vertente mistificam, então, conceitos como “cultura da delinqüência”, “classes perigosas” e seus correlatos “malandros” e “traficantes”. Como conseqüência, as medidas tomadas com base nas idéias culturalistas tratam de reformular os valores culturais através de programas civilizatórios no âmbito da cultura, ou mesmo da religião.

Nesse aspecto, as pesquisas de Campos (2005) corroboram as afirmações de Beato (2010), já que através da análise de inúmeras informações estatísticas sobre a criminalidade tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos da América, o primeiro autor conclui que a lei estigmatiza e criminaliza indivíduos das camadas mais baixas da população: desempregados, trabalhadores informais e jovens prestes a entrar no mercado de trabalho. Para Campos (2005) atribui-se a certos indivíduos maiores possibilidades de desempenhar determinados papéis sociais, e a sociedade cuida para que tal papel seja cumprido, propagando a “marginalização da criminalidade”, também reconhecida na Teoria dos Rótulos, a ser elucidada em parágrafos posteriores.

A corrente de Direito Humanos, por outro lado, mostrou-se mais bem sucedida ao denunciar os crimes de Estado e especificamente da polícia. A concepção humanista tem como base o conceito de conflito social, bem como as teorias de Weber e Simmel, que explicavam a sociedade como um conjunto de grupos que lutam pelo poder político, pelo poder social e pelo prestígio. A criminologia crítica inglesa, por sua vez, inspirada nas idéias marxistas, sustentam que o crime é determinado pelo comportamento dos poderosos que criminalizam aquilo que mais ameaça suas posições, e essa atuação seria corroborada pelo Estado na definição de leis. A partir daí, o Estado fornece lastro para atuação de seu aparato policial, possibilitando à polícia uma atuação brutal e violenta (BEATO, 2010).

Contudo, a corrente humanística não foi suficiente para desenvolver uma agenda sólida que servisse de base para um planejamento estratégico de segurança pública e, com isso, sua aplicação prática mostrou-se um tanto ineficaz.

Outra teoria de relevância na perspectiva crítica é a teoria da rotulação, que trabalha com a noção de desvio como sendo um nome de um conflito social em que pequenos grupos são subjugados por outros melhor organizados e que detém grande parte do poder. Para Beato (2010), as manifestações de poder, em nível organizacional, podem ser vistas pela maior probabilidade que os grupos minoritários têm de serem presos e condenados pela justiça, além de terem mecanismos de defesa mais precários. A partir da subjugação de grupos mais fracos, os grupos dominantes, por meio de empreendedores morais, criam rótulos para seus integrantes e determinam condutas a serem criminalizadas.

A teoria da rotulação não explica, todavia, certos aspectos empíricos, como a relação de raça, gênero e idade com as taxas criminais. De acordo com Beato (2010), crimes são cometidos em sua maior parte por homens, jovens e, no caso americano, negros. Além disso, a teoria é insuficiente para explicar por qual razão ao longo dos anos os indivíduos tendem a cometer menos crimes.

Prosseguindo, Beato (2010) demonstra a percepção de que a insuficiência das teorias anteriormente explicitadas em explicar alguns aspectos do crime conduz à aceitação majoritária da teoria do auto-controle, já que, conforme os principais autores dessa tese, crimes costumam acontecer ordinariamente e em situações corriqueiras, normalmente envolvendo transeuntes na rua. Conclui-se então, que a conduta criminosa pode ser determinada simplesmente pela pouca disciplina individual em relação ao cumprimento de normas.

Face à tamanha diversidade de entendimentos, eis que se justifica a política de segurança pública difusa adotada no Brasil. Se, por um lado, as propostas de reformas sociais e medidas assistencialistas visam suprir carências que justifiquem o ato delituoso, como preconizado pelas teorias socioeconômicas, por outro lado, com base na teoria do autocontrole, tomam-se providências relativas à baixa disciplina individual no cumprimento de normas, como legislações mais recrudescidas e policiamento ostensivo.

4 POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

Conforme as teorias e estudos sobre o crime, há diversos entendimentos que podem pautar a atuação da Justiça Criminal no Brasil. Entretanto, muitas teorias são inviáveis na adoção de políticas criminais ou por exigirem uma atuação demasiadamente invasiva do Estado ou por referirem a aspectos sobre os quais o Estado não tem controle.

Parte dos estudos a respeito das causas da violência dão respaldo, por outro lado, a medidas de segurança voltadas para grupos a que pertencem indivíduos delinquentes, abandonando, de certa forma a abordagem individual. Nesse caso, a decisão sobre o tipo de abordagem torna-se tanto mais dificultoso, pois não se trata somente de grupos economicamente desfavorecidos, mas de diversas subculturas relacionadas à fatores como raça e etnia. Há que se tomar o devido cuidado, nesse sentido, de não cair nas armadilhas da teoria do rótulo, propiciando a “marginalização da criminalidade”, já que a crença no potencial criminoso de grupos marginalizados corresponderá a uma maior vigilância sobre eles e, consequentemente, a uma taxa maior de indiciamentos e criminalidade desse grupo específico (BEATO, 2010).

Outro tipo de abordagem é a voltada para a distribuição espacial de crimes e de contextos oportunos para a sua ocorrência. Chamada de abordagem ecológica, esse tipo de análise visa compreender fatores relacionados ao espaço urbano e à sua dinâmica contextual. Nesse caso, não se trata das características do delinqüente, mas da comunidade e do espaço urbano que ele ocupa, no intuito de captar a razão para a violência se concentrar em algumas regiões. Essa vertente é baseada na constatação de que certas comunidades, ainda que modificadas as condições sociais e culturais de seus residentes, mantêm altos índices de criminalidade (REISS apud BEATO, 2010).

Numa perspectiva economicista, criminoso é tido como uma pessoa racional que faz ponderações sobre o custo e o benefício de suas ações. Com base nisso, poderiam ser adotadas políticas de segurança que tentem reduzir os benefícios e aumentar os custos do crime em relação ao trabalho. Beato (2010) alerta, contudo, que esse é um pressuposto teórico. Assim, não quer dizer que todo criminoso haja racionalmente quando decide praticar um crime. Mesmo assim, pautadas em suposições essencialmente econômicas, medidas como o aumento do risco real de punição, incrustado na eficiência e celeridade da máquina policial e judiciária, bem como propostas de incentivo aos meios legítimos de sustento, seriam adequadas a esse modelo de interpretação.

A abordagem economicista, no entanto, deve ser tomada com cautela pois, além dos criminosos na verdade agirem com racionalidade limitada, Beato (2010) assume que o crime pode tomar formas variadas e ter intenções diversas, de sorte que tratá-lo com homogeneidade pode ser extremamente dificultoso. Em todo caso, a complexidade do sistema punitivo brasileiro impossibilita quaisquer generalizações.

Observa-se, então, que a dificuldade na definição de uma política de segurança pública a ser implantada pelos órgãos e organizações que compõem o Sistema de Justiça Criminal encontra-se exatamente na complexidade em determinar as causas do crime e, conseqüentemente, em adotar uma abordagem adequada.

5 DADOS E ANÁLISES SOBRE O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO

Analisadas as possibilidades de atuação do Sistema de Justiça Criminal, bem como os paradigmas pelos quais se pode abordar o tema da criminalidade, resta, para determinar sua capacidade preventiva, identificar de que maneiras sua atuação é em prol da prevenção.

Embora haja uma gama extremamente pequena de pesquisas sobre seus resultados e ações, estudos realizados por técnicos do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), no ano de 2008, trazem algumas perspectivas de análise..

Entende-se aqui, que a atuação do Sistema de Justiça Prisional não o único fator responsável pelo aumento ou redução dos índices de criminalidade, já que o crime é um fenômeno social complexo que em muitos casos não pode ser alcançado somente por uma mobilização estatal. Contudo, sua atuação é primordial, já que lida mais diretamente com o tema que qualquer outra organização do governo.

Conforme relatório do IPEA, há três níveis de prevenção na análise da capacidade preventiva desse sistema:

1) Prevenção primária: estratégias dirigidas ao ambiente socioeconômico e a fatores que possam interferir nas taxas de violência;

2) Prevenção Secundária: estratégias que visam atingir pessoas mais propensas ao cometimento de crimes e mais suscetíveis a serem vítimas;

3) Prevenção terciária: estratégias direcionadas a evitar a reincidência e promover tratamento, reabilitação e reintegração de indivíduos (autores ou vítimas) à sociedade.

Tratando-se de prevenção primária, o Sistema de Justiça Criminal age basicamente de três maneiras. A primeira delas, o policiamento ostensivo, parte do pressuposto que a presença policial aumenta o risco do criminoso ser pego em flagrante e reduz a possibilidade de violência e tumultos. Contudo, não é possível garantir a presença de policiais em todas as localidades e não há um mapeamento dos locais que podem contar com o policiamento ou ronda policial, nem sobre a qualidade desse serviço.

Outra forma primária de prevenção está na implementação e no apoio a programas educativos, como os de prevenção do uso de drogas, aplicados pelas Polícias militares estaduais, mas quanto a essas ações também não há pesquisas avaliativas sobre seus resultados.

Por último, há a capacidade de punição da Justiça Criminal, que se encontra totalmente defasada pela impunidade. Se a punição dos crimes fosse total, o risco para o criminoso seria aproximado de 100%, a menos que o bônus obtido com o crime fosse considerado pelos delinqüentes maior que o ônus da pena.

Já em relação à prevenção secundária, que se dirige aos fatores que contribuem para a o cometimento de crimes e para a vulnerabilidade de vítimas, as organizações do Sistema de Justiça Criminal poderiam atuar junto a grupos nos quais a proporção de vítimas e infratores fossem maiores do que em outros contingentes populacionais. Porém, como não há pesquisas sobre a vitimização ou registros administrativos capazes de fornecer com precisão informações sobre quais grupos se concentram vítimas e agressores de cada tipo penal. Para se fazer justiça, na data da publicação do relatório do IPEA anteriormente citado, a pesquisa mais próxima desse objetivo tinha sido realizada em 2005 e indicava idade e sexo dos agressores para alguns tipos de crime.

Além disso, a Justiça Criminal enfrenta o ônus de que, trabalhos como esses podem ser extremamente estigmatizantes, de maneira que tais ações são possivelmente mais bem empreendidas por instituições que não pertencem ao Sistema Criminal, como assistências sociais, agentes de saúde e educadores.

A prevenção terciária, por fim, que refere-se a pessoas que já cometeram ou já foram vítimas de crimes, encontra vazão na atuação e polícias, órgãos judiciários e no sistema de execução penal.

A polícia é envolvida nesse tipo de prevenção nas fases de registro do crime, da sua apuração e na realização de prisões. Contudo, por ao contar com um sistema de vigilância que lhe permita identificar a ocorrência da maioria dos crimes, muitos deles sequer chegam a ser registrados. O registro, fica, então, dependente da manifestação de vítimas e testemunhas. O relatório do IPEA (2008) demonstra que a participação dos cidadãos nesse sentido não condiz com o número de crimes que efetivamente ocorrem. Em 2002, uma pesquisa realizada nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Vitória mostrou que a proporção de vítimas entrevistadas que registrou o boletim de ocorrência não chegou a 40%.

O índice baixo de notificação pode decorrer do descrédito do Sistema de Justiça Criminal, pois quanto mais a vítima acredita que sua atuação não vai surtir efeitos, menor será sua tendência à registrar o crime. Nesse sentido, a criação das Ouvidorias de Polícia e dos Serviços de disque denúncia tem conotação de estímulo para o registro de eventos delituosos e para a aproximação entre o Estado e a sociedade. De acordo com o relatório do IPEA (2008), as novas medidas estão obtendo sucesso, principalmente no caso do Disque- Denúncia.

Em relação à apuração do crime, isto é, da identificação do crime e seu autor, os resultados de comparação entre o número de registros, inquéritos e queixas-crimes, é pouco encorajador. Ao receber a denúncia, o delegado tem a discricionariedade de instaurar um inquérito policial ou não. Ao final do inquérito, os resultados são levados ao Ministério Público na forma de “queixa-crime”. Embora as pesquisas sejam escassas o relatório do IPEA (2008) demonstra que é extremamente baixa a proporção de denúncias que viram inquéritos e a proporção de inquéritos que se tornam “queixa-crime”.

Sobre a realização de prisões pela polícia, em flagrante ou pelo cumprimento de ordens judiciais, não há dados ou pesquisas que possam determinar a eficiência preventiva desse órgão, o que certamente não é um bom indicador. A falta de avaliações de desempenho perpetua o descrédito do Sistema de Justiça Criminal, já que impede a percepção da real necessidade de medidas de melhoria.

Sobre atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário na área criminal, as raras pesquisas existentes apresentam um quadro preocupante. Dados de uma pesquisa realizada em 2006 na cidade do Rio de Janeiro demonstram altas taxas de impunidade e pouca celeridade do Poder Judiciário, com 13,6% dos processos criminais prescritos (CANO apud IPEA, 2008).

Já o Sistema de Execução Penal, que tem como principal objetivo evitar a reincidência e promover o tratamento e a reintegração social dos apenados, tem como principal medidor a taxa de reincidência, ou seja, a porcentagem de ex-condenados que voltaram a cometer infrações. Como as pesquisas na aérea criminal são escassas, não no Brasil uma taxa de reincidência nacional, mas o relatório do IPEA traz a porcentagem de reincidentes na população prisional, que é de 42,3%. O relatório mostra, também, que o sistema prisional encontra-se em situação de precariedade, já que faltam, em grande parte do território nacional, órgãos que deveriam contribuir para a prevenção da reincidência, como penitenciárias, cadeias públicas, casa de albergado e órgãos de monitoramento do sistema carcerário. Além disso, há uma grande porcentagem de presos (em torno de 80%) que não estão envolvidos em atividades educacionais ou de trabalho, o que compromete sua futura reinserção social.

Os dados expostos aqui, com base em estudos realizados por técnicos do IPEA em 2008, mostram, ainda que sem dados estatísticos sólidos e abrangentes, o comprometimento da capacidade preventiva do Sistema de Justiça Criminal, que atua sem políticas incisivas de prevenção à violência e de maneira limitada. Pelo estudo em questão, nem mesmo a punição tem demonstrado efeitos significativos, já que a taxa de reincidência aproxima da metade da população prisional. Nota-se por fim a necessidade de aperfeiçoamento do Sistema de Justiça Criminal, a fim de que as políticas de segurança pública tenham maior efetividade. Não se afasta, todavia, as dificuldades anteriormente elucidadas sobre a definição paradigmática do tipo de abordagem que se deve utilizar para a determinação de tais políticas.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como já elucidado anteriormente, o Direito Penal, que se faz presente e concreto na vida social principalmente por meio do Sistema de Justiça Criminal, tem como um de seus objetivos primordiais a manutenção de índices baixos de criminalidade, por meio da prevenção, não só negativa (imposição de sanções), mas também positivas (políticas de segurança pública).

No Brasil, nota-se, se não um descaso, uma defasagem da justiça criminal na determinação de políticas públicas, que se mostram tímidas em relação aos níveis de criminalidade identificados.

Primeiramente, pelas análises feitas até então, é possível perceber que a complexidade do tema dificulta a adoção de políticas baseadas em análises macrossociais, reduzindo a atuação do sistema judiciário criminal ao tratamento casuístico do crime, através da imputação da pena ao delinqüente e a proteção única ao bem jurídico. A complexidade de crimes impossibilita uma generalização que norteie medidas de segurança pública e os estudos relativos às causas da violência, quando não contraditórios, não são abrangentes o suficiente.

Não obstante, a pena, por si só, não consegue exercer a função preventiva relegada ao Direito Penal, especialmente se não for sustentada por um sistema de aplicação que lhe dê efetividade, como é caso do Brasil.

A ausência de pesquisas consistentes e específicas sobre o tema da criminalidade é, ainda, mais um empecilho à efetiva prevenção da violência, pois ao não saber em que medida se encaixam os níveis criminais, quais as suas características e especificidades, as ações de segurança pública tornam-se penosas e infrutíferas.

Por outro lado, o sucateamento das máquinas jurídicas e carcerárias, a atuação insuficiente e ao mesmo tempo bruta da polícia, bem como a falta de conexão entre os órgãos do sistema de justiça criminal, propagam um descrédito em relação aos valores protegidos pelo Estado, e uma redução do risco (ou do custo) do crime para o delinqüente.

Assim, a capacidade preventiva do Sistema de Justiça Criminal é prejudicada e larga escala, seja por fatores técnicos ou conceituais, de maneira que se torna difícil a crença de que dentro de suas organizações específicas (polícia, ministério público, órgãos judiciários, sistema prisional e defensoria pública) seja possível a conciliação de abordagens macrossociais com as de nível micro atualmente existentes.

REFERÊNCIAS

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