segunda-feira, 3 de março de 2014

PRESO INJUSTAMENTE

REDE GLOBO, FANTÁSTICO, Edição do dia 02/03/2014


Entenda a sequência de falhas que levou Vinícius Romão para a cadeia. Figurante de novelas e vendedor ficou preso por 16 dias no Rio. Advogada conta que ele só conseguiu sair porque teve muita ajuda de gente de fora.





O vendedor e figurante de novelas Vinícius Romão e o porteiro Paulo Antônio da Silva são dois inocentes que viveram um pesadelo. Eles foram presos por crimes que não cometeram. Vinícius ficou 16 dias na cadeia. Paulo, cinco anos. O Fantástico investiga: por que erros assim acontecem?

“Ele sacou a arma, apontou pra mim e disse: ‘sou policial civil, cadê a bolsa, cadê a bolsa?’ Os carros passavam e falavam ‘vagabundo, vagabundo’. Eu falei que eles estavam enganados, que eles tinham pego o cara errado”, conta Vinícius.

Mas não adiantou. Por 16 dias, Vinícius Romão, de 27 anos, ficou preso. Foi acusado de ter roubado a bolsa de uma copeira.

Por que apenas o testemunho de uma vítima fez com que Vinícius fosse preso? Houve erro da polícia? O Fantástico foi atrás dessas respostas.

Consultamos uma advogada criminal, presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, e um professor de Direito da Universidade Federal Fluminense. Eles apontam a sequência de falhas que levou Vinícius para a cadeia.

10 de fevereiro:
Vinícius foi parado pela polícia, logo depois que tinha subido uma escada e já estava em um viaduto no Méier, na zona norte do Rio de Janeiro. Ele tinha saído do trabalho, que fica nessa região. Estava quase chegando na casa dele e a polícia o abordou. “Dona Dalva falou: ‘foi ele, foi ele’. O policial já me rendeu e mandou eu botar a mão pra trás e deitar no chão”, lembra Vinícius.

Quando foi parado, ele não reagiu. “Eu sou inocente, não vai ter arma comigo, não vai ter bolsa, não vai ter nada”, disse.

1º erro: o flagrante foi feito sem base na lei

Segundo os especialistas consultados pelo Fantástico, isso já poderia descaracterizar a prisão em flagrante.

“Quando o Vinícius foi encontrado, não havia com ele nada evidentemente da vítima”, diz a advogada criminal Maíra Fernandes.

“Ele não estava sendo perseguido. Quando o policial o aborda, já parte da premissa que ele é o autor do crime com base no testemunho de uma vítima que ainda está nervosa sob efeito do ato violento que acabou de sofrer”, explica o professor de Direito da UFF Nilton César Flores.

No programa "Encontro com Fátima Bernardes", da última quinta-feira, Dalva, a vítima do assalto, falou por telefone que Vinícius era muito parecido com o assaltante. “Infelizmente ele era muito idêntico”, disse Dalva. Mas ela explicou que ficou em dúvida durante o reconhecimento.

“O policial falou assim: ‘é ele’? Eu falei: ‘é parecido’”, conta Dalva. Psicólogos explicam que isso pode acontecer com qualquer pessoa. Num momento de muito nervosismo, a memória fica bem comprometida.

“O índice de confiabilidade de um reconhecimento desse é muito baixo. O ideal é que você acolha essa pessoa, acalme essa pessoa. Tente estabilizar essa pessoa. Trinta minutos é o suficiente para a pessoa ter a calma, se sentir segura e conseguir recordar com maior qualidade a situação vivenciada”, explica o psicólogo forense Antônio Serafim. Mas isso não aconteceu. O reconhecimento foi feito na rua, logo depois do assalto.

Vinícius conta que nunca chegou a ser colocado numa sala, com outros presos, com outras pessoas, para que a vítima dissesse: ‘é essa pessoa”.

2º erro: o reconhecimento foi feito às pressas

“O código de processo penal recomenda que o reconhecimento seja feito em uma sala com pessoas com características semelhantes àquelas da pessoa descrita, com a mesma roupa”, afirma a advogada.

Após ser detido, Vinícius foi levado à delegacia. E só deixaram ele fazer uma ligação no dia seguinte. “A partir do momento em que não lhe é colocado o direito por exemplo de ter acesso a um familiar, já está havendo um cerceamento da defesa dele”, defende o professor de Direito.

Vinicius contou que foi interrogado pelo delegado, quando já estava na cela, sem a presença de um advogado.

3º erro: não houve acesso a um advogado

“Ele prestou um depoimento em sede policial completamente desassistido e isso já é uma manifesta ilegalidade”, declara a advogada. O pai só viu o filho na delegacia no dia seguinte à prisão.

“E na hora que nós nos despedimos, o policial levou ele lá pra cela. Aquilo ali foi um momento muito triste mesmo”, lembra Jair Romão de Souza, pai de Vinícius, emocionado. A prisão foi mantida apenas com base na declaração da vítima.

4º erro: a prisão foi mantida sem elementos suficientes

“Não havia absolutamente nada que justificasse, que fundamentasse mantê-lo preso. É uma prisão plena de ilegalidades”, defende a advogada.

Confundido com estuprador, porteiro ficou 5 anos preso em BH

Um erro como o que colocou Vinícius na cadeia também aconteceu em Belo Horizonte, em 1997. Uma testemunha confundiu o porteiro Paulo Antonio da Silva, hoje com 67 anos, com um estuprador. Os dois eram parecidos.

Ele ficou cinco anos preso em regime fechado. Chegou a ser agredido por outro preso. “Eu tomei uma espetada aqui no peito aqui. Eu não morri porque o médico do Pronto Socorro é muito bom”. Lembra Paulo Antônio da Silva, porteiro.

Em 2002, ele passou para o semiaberto. Depois, foi para o domiciliar. Paulo só foi declarado inocente pela justiça em 2013 - 16 anos depois, quando o verdadeiro culpado, Pedro Meyer, foi condenado.

“As minhas filhas não eram pra ter conhecido cadeia por dentro, as minhas filhas não eram pra ter passado em revista de cadeia pra me visitar, que eu nunca fui criminoso”, lamenta Paulo Antônio.

No Rio, Vinícius conseguiu a liberdade depois de 16 dias. Mas só por causa do barulho que os amigos fizeram. Depois da repercussão do caso na internet, a vítima do assalto mudou o depoimento.

“Ele só conseguiu porque teve um apoio muito grande de quem estava do lado de fora. E a maior parte das pessoas não têm. Não tem quem grite por elas do lado de fora e não tem quem escute”, explica a jurista.

Em nota, a Corregedoria da Polícia Civil do Rio de Janeiro disse que vai apurar se houve irregularidades na prisão de Vinícius. Informou também que vai avaliar a conduta do policial civil que abordou o vendedor e a do delegado de plantão, responsável pelo flagrante.

Vinícius ainda responde por roubo, mas agora em liberdade. Está com seis quilos a menos e teve o cabelo raspado.

A advogada vê nessa história toda um componente de racismo. “Talvez, se tivesse sido uma pessoa com outras características descritas pela vítima, os cuidados teriam sido um pouco diferente”, diz a advogada.

“O contexto social muda. Se você está num bairro carente, num traje mais simples, andando a pé, você seguramente vai estar mais vulnerável a uma violência dessa natureza”, diz o advogado.

“Não sei se foi uma discriminação racial, moral ou não sei, pela minha aparência, que foi um pré-conceito que aconteceu”, declara Vinícius.

Vinícius quer tocar a vida. Ele é formado em psicologia, já foi figurante de novelas da Globo. Hoje, trabalha em uma loja de roupas do Rio. “Espero que isso, essa minha rotina volte logo, porque não posso mentir para vocês que eu estou muito assustado ainda com tudo isso. Eu passei por situações horríveis, a qualquer momento eu podia ter sido morto”, conta Vinícius.

Ao responder se vai entrar com um pedido de ressarcimento para tentar minimizar o que sofreu, já que não dá pra apagar, ele mostra a camisa escrita “justiça”. “Meu caso não pode ser esquecido, meu caso tem que servir de exemplo para que a gente mude e que o Brasil seja um país de justiça”, afirma Vinícius.

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