quarta-feira, 20 de março de 2013

POLÍCIA INTEGRADA AO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL

REVISTA VEJA, Edição 2141 / 2 de dezembro de 2009
Dossiê - Polícia • Pesquisa


Com gente bem treinada, investimento em tecnologia e modernos métodos de gestão, Minas Gerais e São Paulo mostram que  não é preciso mudar o mundo para melhorar a segurança


Ronaldo França

Fotos Leo Drumond/Nitro

OLHOS BEM ABERTOS
A vigilância por câmeras, presente em várias cidades do mundo, começa a se expandir nas principais capitais brasileiras, como Belo Horizonte


Não fosse pela farda, o comandante da Polícia Militar de Minas Gerais, coronel Renato de Souza, 46 anos, em nada lembraria um policial. Gestos suaves, vocabulário preciso, ele parece um acadêmico. É quase isso. Presença constante em seminários e congressos sobre segurança pública, Souza tem um currículo de tipo ainda incomum no Brasil, mas que começa a ser usual nas melhores polícias do mundo. À tradicional formação como policial, ele incorpora o mestrado em administração pública e a especialização, na Academia de Polícia do FBI, na Virgínia, em gestão de crises e ainda curso de gerenciamento de empreaas. Souza faz parte de uma nova geração com formação de qualidade em administração e estudos criminais que está ascendendo na hierarquia da segurança pública. Foi o primeiro a ocupar cargo tão alto e um sinal visível de que, finalmente, se começa a perceber no país como é importante estabelecer uma integração entre os que pensam a segurança nas universidades e os que combatem a violência nas ruas.

Isso é importante porque rompe com a ideia paralisante de que para combater a violência é preciso antes mudar o mundo. Durante muito tempo vigorou esse conceito nefasto de que seria impossível combater a violência e a criminalidade sem atacar primeiro as mazelas sociais. Havia por trás disso a visão distorcida de que bandidos são vítimas da sociedade – um anacronismo que, felizmente, começa a ser sepultado. Nas palavras do prêmio Nobel de Economia de 1992, o economista Gary Becker, da Universidade de Chicago: "É um mito criado por intelectuais a ideia de que é impossível combater o crime porque ele é fortemente relacionado com a pobreza e só pode ser reduzido com drásticas reformas sociais". Um dos fundadores dos estudos do comportamento humano por meio das fórmulas econômicas, Becker mostrou com clareza que o número de crimes baixa quando sobe o número de criminosos presos. É óbvio. Mas o óbvio ficou décadas escondido sob a argumentação de que é necessário melhorar primeiro as condições de vida das regiões onde se encontra a maioria dos criminosos violentos para depois esperar baixar os índices de banditismo. Diz ele: "Não é preciso esperar uma geração para que mudanças na educação e na moralidade tenham efeito na atenuação do crime".

Becker entendeu primeiro o que somente agora começa a se materializar como fundamento das políticas de segurança pública: o crime não é invencível. Bogotá e Medellín, na Colômbia, Nova York, Boston e, mais recentemente, Los Angeles, nos Estados Unidos, são exemplos a demonstrar que sim, existe um caminho. O que há de comum a todas as experiências de segurança pública bem-sucedidas no planeta é que elas, sem exceção, passam pela construção de um serviço policial eficiente. Essa eficiência não se mede apenas pelo número de policiais nas ruas. Não é meramente uma questão quantitativa. Departamentos de polícia eficientes são aqueles que fazem o crime baixar em sua área de atuação. São invariavelmente bem geridos, apresentando uma série de atributos indispensáveis  que incluem treinamento, credibilidade, proximidade com a população, melhor gestão dos recursos, tecnologia e integração com a Justiça e o sistema prisional.

Para efeito de análise, examinemos o caso da formação acadêmica e do treinamento policial. No Brasil, a maioria das polícias civis contenta-se em mandar homens ao trabalho depois de apenas três meses de formação. Grande parte chega à academia tendo cursado uma faculdade de direito, o que resulta numa formação excessivamente jurídica e pouco prática. É tempo insuficiente para o aprendizado de todas as técnicas que compõem o universo profissional dos policiais. Principalmente porque se trata de um tipo de serviço peculiar. Policiais são os únicos funcionários públicos que têm licença para usar a força, o que implica desde empregar um simples golpe para contenção de um agressor até tirar a vida nos casos em que ele próprio ou um terceiro esteja ameaçado. Deixar que cheguem às ruas para o trabalho despreparados é temerário.

Na Polícia Militar, a situação é melhor, o que explica a avaliação mais positiva da população na pesquisa CNT/Sensus feita em parceria com VEJA. O curso básico de seis meses é similar ao de outros países. Mas o destaque nessa área é o Japão, que treina seus recrutas por um ano antes de mandá-los ao trabalho. Isso ajuda a explicar a taxa de 1,4 homicídio por 100.000 habitantes – um quarto da taxa nova-iorquina, que já é baixa. Treinar um policial para situações de confronto é um trabalho delicado. Exige-se a repetição de ações à exaustão. Em Los Angeles, esse método foi aprimorado nos últimos dois anos. "Entendemos que, além de ensinar a prática de tiros ou de direção em perseguições, é preciso integrar todas as disciplinas", afirma a chefe do departamento de treinamento, Sandy Jo MacArthur.


Fotos Jonne Roriz/ AE e Ricardo Benichio

CHOQUE DE GESTÃO
Com administração organizada, a polícia de São Paulo já tem helicóptero que vigia a cidade e armas não letais

Aperfeiçoar treinamentos, adaptar currículos e testá-los na rua é parte do trabalho de gestão, uma cadeira em que a maioria das polícias brasileiras seria reprovada. O primeiro grande êxito nessa área se deu em Nova York, na década passada, na gestão do então prefeito Rudolph Giuliani, mas não pelas razões que se costumam mencionar. Batizado de Tolerância Zero, é confundido com um programa voltado apenas para a maior repressão a delitos. Foi isso e muito mais. O projeto implantado na cidade pelo então chefe de polícia, William Bratton, foi bem mais abrangente. Nova York empreendeu um conjunto de ações cujo coração foi a criação de um sistema de gerenciamento, semelhante em muitos aspectos ao utilizado por grandes empresas privadas. O CompStat (sigla para estatísticas computacionais comparadas) é uma metodologia para solucionar problemas e cobrar responsabilidade dos policiais encarregados de resolvê-los. Tudo isso com o uso de softwares que ajudam a ter uma ideia precisa das ocorrências criminais em cada rua da cidade.

A boa notícia é que, como demonstra o coronel Renato de Souza, o Brasil começa a trilhar esse caminho. Minas Gerais e São Paulo adotaram sistemas semelhantes e já ostentam índices de redução de crimes violentos em valor inquestionável. O caso mais notório é o de São Paulo, cuja taxa de homicídios na capital foi reduzida em 79% entre 1999 e 2009, ficando em 11 por 100 000. Ainda é alta, mas o resultado impressiona porque até a década de 90 sua Polícia Militar era mais conhecida pela chacina do presídio do Carandiru, que resultou em 111 mortos, e pelos abusos e crimes cometidos contra moradores da favela Naval, em Diadema, na região metropolitana da capital. A enorme repercussão dos dois casos foi o que deu a partida na mudança da PM paulista. Ela ainda está distante do ideal, como mostrou, recentemente, a sucessão de erros na frustrada tentativa de resgate da estudante Eloá Pimentel, mas trilha o caminho certo.


O investimento mais importante foi na construção de uma base de análise de dados, com o sistema de informações criminais mais bem estruturado do país, que registra a localização das ocorrências no mapa. O Infocrim tem dados de todos os boletins de ocorrência registrados no estado. Ele se soma a outros dez bancos de dados que são usados pelos policiais em suas investigações. Outra novidade relevante foi a integração do departamento que despacha os carros e helicópteros ao que atende as ligações de emergência da população. São inovações que parecem óbvias, mas nada é fácil no estado que concentra 20% da população brasileira, 37% da frota de veículos e tem 19 milhões de habitantes somente da região metropolitana. A Polícia Civil tem mais problemas, e mais graves. Mas obteve um avanço importante no Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa, o DHPP, no qual o governo estadual concentrou seus esforços para alcançar o êxito na diminuição do número de mortos. Reformulou o departamento, adotou softwares e sistemas de informações para investigações que fazem com que São Paulo solucione hoje 48% dos casos de homicídio que investiga. No Rio de Janeiro, para se ter uma ideia, são apenas 4%.

Minas Gerais adotou mudanças que abrangeram toda a Secretaria de Defesa Social. Isso significou melhor desempenho também da Polícia Civil. O governo estadual formou um colegiado em que as decisões são tomadas em reuniões que juntam na mesma sala todos os envolvidos na segurança pública, o que inclui bombeiros, sistema penitenciário e Juizado de Menores, por exemplo. Quem reporta o andamento da situação nos municípios mineiros são profissionais formados no curso superior de administração pública, que fazem a interface com a população e as prefeituras. "Minas Gerais tem um trabalho exemplar na constituição de metas e cobrança de resultados, a exemplo do Comp-Stat de Nova York", afirma a especialista em justiça criminal Julita Lemgruber, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (Cesec). Tudo é monitorado seguindo um sistema de metas. O resultado das políticas implantadas foi uma drástica redução do número de crimes violentos em Belo Horizonte – de 44 000, em 2003, para 22 300, no ano passado. É a prova do acerto no caminho escolhido. Com policiais mais bem preparados, mais tecnologia e polícias bem administradas, há uma chance de que a sociedade consiga vencer o crime.



NA SALA DE AULA
O comandante Renato de Souza: o primeiro a chegar ao topo


O QUE FAZ UMA POLÍCIA MELHOR

1. Treinamento - Há um conjunto de situações cotidianas que um policial deve conhecer para saber como decidir sua ação. Elas vão desde ajudar alguém passando mal na rua até perseguir criminosos e atuar no resgate de sequestrados. Deve-se repetir uma ação no mínimo vinte vezes para que um policial padronize ritos, gestos e palavras em momentos de abordagem a um suspeito, por exemplo

2. Credibilidade - Quando a população acredita na polícia, fornece informações com as quais se constrói a estratégia de policiamento de cada rua, cada esquina. Estudos baseados em experiências bem-sucedidas, como a de Chicago, mostram que a taxa de resolução de crimes mais que triplica quando a população colabora com informações e sugestões para atacar os problemas

3. Gestão - As técnicas de administração empresarial estão consagradas como as mais eficazes na condução das polícias. A PM de Brasília tem três vezes mais policiais por habitante do que
a de São Paulo, e a média salarial é o dobro. Mas o trabalho de gestão de São Paulo é mais eficiente, com um sistema de metas, cobrança de resultados e investimento em tecnologia. A taxa de homicídios é metade da que se tem na capital do país

4. Prevenção e planejamento - A experiência internacional mostra que cada dólar investido em novos métodos de investigação e planejamento detalhado do policiamento representa uma economia de
3 dólares no custo da repressão


5. Mapear as zonas de perigo - Prevenir furtos de bicicletas exige esforço e recursos menores do que garantir a segurança contra homicídios. Para dirigir esforços de forma mais eficaz, é preciso construir o mapa do crime, superpondo a localização de ocorrências no mapa da cidade através do uso de GPS


6. Prender mais bandidos - Em Nova York, prende-se uma pessoa para cada grupo de cinquenta habitantes, em um ano. No estado do Rio de Janeiro, a média é de um preso para cada 1 000 habitantes, no mesmo período. A diferença é que lá a tolerância é mínima. Leva-se à detenção até quem pula a catraca do metrô, o que reduz a sensação de impunidade. É uma das razões para a taxa de homicídios carioca ser até seis vezes a nova-iorquina


7. Integrar o sistema de justiça criminal - Não adianta prender e soltar criminosos para desestimular novos delitos. Tem-se de mantê-los encarcerados, o que exige sintonia entre polícias, Justiça, promotorias e o sistema prisional

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