quinta-feira, 28 de novembro de 2013

RESPEITO



ZERO HORA 28 de novembro de 2013 | N° 17628


ARTIGOS


Jader Marques*



Quando perguntavam a Oswaldo de Lia Pires quem ele era, sempre respondia: advogado, advogado, advogado. Foram mais de 65 anos de exercício ininterrupto da advocacia, sempre aguerrida, vibrante, forte. Quem teve a sorte de conviver com a lucidez, com a generosidade, com a experiência desse advogado que viveu quase um século pôde perceber o seu descontentamento com o desrespeito geral em relação à profissão do advogado, especialmente o criminalista. Para aqueles mais chegados, como seus sobrinhos e companheiros de escritório, contava histórias de um tempo em que uma comunidade inteira parava para reverenciar o trabalho, a oratória, a elegância, a inteligência, a astúcia, de promotores e advogados ilustres, em torno de alguma causa de repercussão, geralmente uma tragédia, envolvendo honra, sangue, ódio, cobiça, mistério. Bons tempos aqueles, dizia o Dr. Lia Pires.

Advogar é a arte de argumentar, de provar, de enfrentar e de resistir, de ser forte por alguém que está fraco, de ser a voz de alguém que não pode falar, de ser a defesa contra tudo e contra todos, contra a unanimidade, pela garantia de um processo segundo as regras constitucionais, adequado, ético, justo. Advogar é defender o direito de defesa, mesmo diante do mais horrendo dos crimes, mesmo diante da mais odiada das criaturas humanas, mesmo diante da enorme repulsa da imprensa, que tanto anima os feridos, os assustados, os impressionados. Advogar é estar ao lado do demasiado humano de forma incondicional, sem fazer julgamentos morais, sem ter preconceitos, sem sentir constrangimentos, sem ter medo do ataque injusto e desmedido de qualquer um, sem titu-bear diante da opressão e do abuso de autoridade.

A maior agressão ao trabalho de um advogado, sobretudo na área criminal, é a confusão. A discussão acalorada em torno de uma tese ou de um requerimento não deve ser confundida com um teatro. O debate, alguma vez ríspido, entre acusação e defesa não deve ser confundido com uma briga pessoal ou com desrespeito. O advogado aguerrido, forte, combativo, não deve ser confundido com um provocador, assim como não pode ser confundido com seu cliente. Firmeza na condução da defesa não pode ser confundida com ataque à vítima. Todas as formas de confusão, premeditadas ou involuntárias, ofendem a honra dos profissionais, violam a necessária integridade das prerrogativas da advocacia e enfraquecem o Estado democrático de direito.

Sem direito de defesa, não há processo regular. Sem direito de defesa, não há sentença válida. Sem direito de defesa, não há punição justa. E sem advogado não há direito de defesa. Em nome dos acadêmicos e futuros advogados, em nome dos colegas de advocacia criminal, em nome dos acusados pela Justiça pública: Respeito!


*ADVOGADO CRIMINALISTA

domingo, 24 de novembro de 2013

NOMES SEMELHANTES E ATÉ APELIDOS LEVAM INOCENTES À PRISÃO

FOLHA.COM 24/11/2013 - 02h05


JULIANA COISSI
DE SÃO PAULO


Maria Aparecida foi confundida com Aparecida. Moraes, com Morais. José da Silva, com outro de mesmo nome. Todos foram presos por crimes que não cometeram.

Somente em São Paulo, segundo levantamento feito pela Folha, ao menos 56 pessoas foram vítimas desse tipo de equívoco desde 1994.

Foram horas, dias e até anos de reclusão por terem nomes e sobrenomes parecidos com os dos verdadeiros suspeitos, embora não tivessem feições, nomes dos pais nem documentos semelhantes.

Márcio Neves/Folhapress

Jurandir Xavier da Cruz, 58, preso em virada do ano porque criminoso falsificou seu RG


Somados os períodos atrás das grades, essas pessoas permaneceram presas injustamente por sete anos, oito meses, 18 dias e 14 horas.

Há casos ainda de pessoas encarceradas porque tiveram o documento roubado. Cumpriram pena no lugar do ladrão que lhes subtraiu o RG.

A reportagem chegou aos 56 casos a partir de ações no Tribunal de Justiça de SP e da análise dos 96 acórdãos em que aparecem os termos "homonímia" e "preso".

O número pode ser ainda maior. Isso porque o levantamento só inclui quem processou o governo do Estado, responsável pelas polícias que efetuaram as prisões.

O valor total das indenizações definidas pela Justiça nesses processos foi de R$ 1,7 milhão. Na maioria dos casos, porém, não houve pagamento porque o Estado ainda recorre da decisão, embora admita falhas nas prisões.

Em algumas situações, há erros crassos, como confundir um "Barboza" com outro "Barbosa", com "s".

Num outro episódio, a polícia se valeu apenas do apelido para efetuar a prisão. Eronildo Furtuoso Correa, o Nildo, ficou nove meses na cadeia em 2007 no lugar de outro Nildo -Leonildo. "Minha vida até hoje não entrou no eixo", disse Eronildo.

Ele e outras vítimas desses erros relataram à Folha que ainda hoje têm problemas emocionais e que nunca mais recuperaram o emprego.

Maria Aparecida Radiuc, 58, ficou seis dias presa em 2001 ao ser confundida com a cunhada, Aparecida Radiuc, suspeita de sequestro de um bebê. "No caminho, só gritavam: 'Cadê o bebê? Onde o deixou'? Eu não entendia nada", disse ela.

Cida diz que o delegado a agrediu, batendo forte em suas costas. "Na cadeia, as presas gritavam: Vai morrer!"

A maioria aguarda indenização. José Francelino da Silva, não mais. Preso por 26 horas em 2009, morreu sem reparação financeira.

Para Martim Sampaio, diretor de Direitos Humanos da seção paulista da OAB, as prisões ocorrem por um erro "abominável", a falta de um sistema eficiente de checagem de dados pessoais.

"A maioria dos presos neste país é pobre e tem nomes simples, como Souza, Silva. E a polícia não verifica direito. Simplesmente prende."

INDENIZAÇÃO

As indenizações não seguem nenhum padrão. O TJ, por exemplo, condenou o governo paulista a pagar R$ 20 mil a um PM que ficou preso 12 horas. Já para um homem detido por dez dias, a indenização foi de R$ 5.000.

Juiz no fórum de Santana, Enéas Garcia afirmou que o TJ tem trabalhado para tratar casos de homonímia com mais rapidez, mas reconhece sobrecarga de processos.

Sobre valor, diz que não há uma tabela de indenizações.

DE DALLAS A SANTA MARIA

ZERO HORA 24 de novembro de 2013 | N° 17624

ARTIGOS

Flávio Tavares*



Qualquer crime contra a vida e a dignidade humana é perverso, mas pode até ter explicação racional

O assassinato de John Kennedy completa meio século, sem que se saiba quem o matou e a mando de quem ou do quê. A grande conspiração que, com dois tiros disparados a mais de 30 metros, estourou os miolos do presidente dos Estados Unidos a 22 de novembro de 1963, em Dallas, não é apenas um complicado caso policial que passe à História como insolúvel, se dissolva nos anos e no esquecimento. Matar o presidente da maior potência militar, econômica e financeira do planeta em seu automóvel em plena rua e, passados 50 anos, não desvendar o crime (nem saber explicá-lo) é ainda mais vergonhoso e absurdo do que o próprio crime.

Sim, pois o encobrimento é mais ultrajante do que o delito em si. Qualquer crime contra a vida e a dignidade humana – a começar pela tortura – é perverso na essência, mas pode até ter explicação racional. Encobri-lo, porém, é perversão abjeta e irracional, pois cometido pela própria Justiça. É um crime dentro do crime. Só a mesquinhez do interesse subalterno (chame-se corrupção, desídia, peculato, suborno, alienação, ânsia de lucro ou o que for) pode explicá-lo.

No assassínio de Kennedy, “razões de Estado” levaram a encobrir o crime – até hoje, a nódoa profunda e vergonhosa da democracia norte-americana. Lá, desbarataram até a odiosa discriminação racial que, em Mississipi e no Texas, ainda nos anos 1960 enforcava negros na rua. Hoje, Obama – um negro – governa os EUA e o opróbrio foi vencido. Mas falta apontar os concretos assassinos de Dallas.

Seria penetrar no amargo âmago do poder, investigar (e acusar) a CIA e os serviços secretos. E, com isto, fazer estremecer o próprio poder, derrubando políticos, empresários, mafiosos notórios ou aparentes virtuosos. E, até, astros de Hollywood, do boxe e do beisebol.

Mas, e aqui, que não temos Óliúdi nem boxe ou beisebol?

A cada grande crime novo, evapora-se o anterior. Aqui tudo é Copa do Mundo e futebol e nem isto está a descoberto. No resto, o encobrimento manda e desmanda. Um mês atrás, no Ministério do Trabalho, em Brasília, estourou um escândalo envolvendo íntimos assessores do ministro em desvios de R$ 400 milhões. (Repito a cifra descomunal por extenso – quatrocentos milhões – para não haver dúvida). Preso em seu gabinete, o principal acusado saiu algemado do ministério, mas (liberado depois) volta lá todos os dias, mesmo demitido.

Lembram-se da reação do ministro Manuel Dias, do PDT? Ameaçou “revelar coisas impublicáveis” se perdesse o cargo e não se falou mais nisso. Logo após, a Procuradoria da República de novo “perdeu o prazo” para responder a um tribunal estrangeiro sobre as multimilionárias somas depositadas pelo chefão do PP, Paulo Maluf, em bancos europeus, notoriamente oriundas de fraudes. Com isto, prescreve o processo iniciado lá fora.

A lista dos grandes encobrimentos ocuparia páginas do jornal. Por isto, limito-me ao mais trágico dos acontecimentos e que (mesmo bem próximo) se encaminha para a mais infamante impunidade – a matança de janeiro na boate de Santa Maria.

O minucioso inquérito policial e a amplitude da carnificina de 242 pessoas não foram suficientes para sensibilizar os promotores de Justiça por lá. Foi preciso reabrir agora a investigação, quase recomeçar tudo de novo, para evitar que se encubra o crime abjeto. E para que Santa Maria não seja a Dallas brasileira.

P. S. – Além do sorriso, o mais bonito na libertação de Ana Paula Maciel foi o cartaz que empunhou ao sair da prisão, na Rússia: “Salve o Ártico”. Mais do que salvar-se a si mesma, ela opta por salvar a vida no planeta.


*JORNALISTA E ESCRITOR

terça-feira, 19 de novembro de 2013

CASO BECKER À ESPERA DE JUSTIÇA


ZERO HORA 9 de novembro de 2013 | N° 17619
HUMBERTO TREZZI

Caso Becker longe do fim. Às vésperas de completar cinco anos da morte, suspeitos de execução ainda não se tornaram réus


O assassinato que mexeu com o Rio Grande do Sul completará cinco anos no início do próximo mês e não há sequer perspectiva de um julgamento a respeito. Foi em 4 de dezembro de 2008 que o oftalmologista e vice-presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), Marco Antonio Becker, foi morto a tiros dentro de seu carro após ser abordado por dois homens em uma moto na Rua Ramiro Barcelos, bairro Floresta, na Capital.

A Polícia Civil levou um ano para concluir: o crime foi tramado por outro médico, o ex-andrologista Bayard Fischer dos Santos, que teria se aliado a um traficante de drogas, Juraci Oliveira da Silva, o Jura, e a outras pessoas para planejar o assassinato. A suspeita é de que Becker teria sido morto por vingança, por ter ajudado o Cremers a cassar o direito de Bayard de exercer a medicina (algo que Bayar pretendia reverter).

A Polícia Civil indiciou Bayard e mais quatro pessoas por envolvimento no crime. Ainda mais duro, o Ministério Público Estadual aumentou de cinco para 11 o número de pessoas responsabilizadas. E então o caso sofreu uma reviravolta processual. Por pedido do defensor de um dos réus, em setembro de 2012 o Superior Tribunal de Justiça determinou o cancelamento do processo na Justiça Estadual e o remeteu à Justiça Federal, por entender que o Cremers representa o Conselho Federal de Medicina – um caso federal, portanto.

Em abril deste ano, o Ministério Público Federal (MPF) ofereceu denúncia contra Bayard e outras sete pessoas. E, desde então, o caso não avança, formalmente, no Judiciário. Em maio estava em análise na 2ª Vara Criminal Federal e agora passou para a 11ª Vara Federal (agora não há nominação criminal nas varas).

O juiz Ricardo Borne está com o caso em mãos e ainda não decidiu se aceita a denúncia. Consultado por Zero Hora, ele mandou informar que pode tomar três caminhos: aceitar a denúncia como está, sugerir novas investigações ou rejeitar a denúncia. Caso aceite a denúncia, Borne adianta que toda a fase de instrução processual será refeita. Em bom português: réus e testemunhas serão ouvidos novamente, agora na esfera federal.

Justiça Federal poderia usar depoimentos, diz promotora

Para investigar o crime e indiciar cinco pessoas, por exemplo, a Polícia Civil levou um ano. Já o Ministério Público e a Justiça estaduais demoraram outros três anos ouvindo testemunhas e réus. Pois esses interrogatórios serão todos refeitos e podem, outra vez, levar três anos, se o ritmo federal for semelhante ao estadual. Isso se todas as testemunhas forem encontradas, não tiverem se mudado para outros Estados ou para outros países, o que representaria mais tempo na instrução do processo. Os depoentes terão de ser localizados, intimados por um oficial de Justiça e ouvidos, algo que não é rápido, como se sabe.

A promotora Lúcia Helena Callegari, da 1ª Vara do Júri da Capital, que trabalhou na denúncia contra os réus, e o advogado João Olímpio de Souza Filho, defensor de Bayard Fischer Santos, têm visões distintas sobre os rumos do processos.

– Tenho convicção de que o juiz federal poderia usar os depoimentos tomados na esfera estadual, seja das testemunhas, seja dos réus. Foram colhidos com ampla defesa, respeitados os direitos – opina Lúcia Helena.

Para Souza Filho, o que foi produzido deve ser esquecido:

– É claro que nada pode ser aproveitado do processo anterior, pelo simples motivo de que ele não existe juridicamente.



CRIME MOTIVADO POR VINGANÇA

Um colega de profissão e um traficante entre os suspeitos

- Na noite de 4 de dezembro de 2008, o oftalmologista e vice-presidente do Cremers Marco Antonio Becker é morto a tiros dentro de seu carro depois de ser abordado por dois homens em uma moto na Rua Ramiro Barcelos, no bairro Floresta, em Porto Alegre.

- Em 11 de dezembro de 2009, a Polícia Civil indicia o andrologista Bayard Fischer dos Santos e mais quatro pessoas. Conforme as investigações, o traficante de drogas Juraci Oliveira da Silva, o Jura, teria intermediado o assassinato, e os executores seriam dois comparsas dele. Assistente de Bayard, Moisés Gugel é indiciado por ter trocado mensagens com Jura.

- Becker teria sido assassinado por vingança, em razão da cassação do direito de Bayard de exercer a medicina.

- Em 22 de dezembro, o Ministério Público Estadual encaminha a denúncia à Justiça, aumentando de cinco para 11 o número de envolvidos - três pessoas que seriam ligadas aos executores do crime e outras três por falso testemunho. Uma semana depois, a Justiça aceita a denúncia contra Bayard e as outras 10 pessoas.

- Em 2 de agosto, começam os depoimentos da acusação no Caso Becker.

- Em 14 de abril de 2011, Bayard e outros cinco então réus são soltos. O ex-andrologista estava preso desde fevereiro de 2010. O TJ mandou soltar o grupo sob argumento de que ficaram mais de um ano detidos, podendo responder pelo crime em liberdade.

- Atendendo a pedido da defesa de um dos réus, em setembro de 2012, o STJ determina o cancelamento do processo na Justiça Estadual, ordenando que tramite na Justiça Federal, por entender que o Cremers representa o Conselho Federal de Medicina.

- Em janeiro de 2013, o processo chega para análise do Ministério Público Federal (MPF), que oferece denúncia contra Bayard e outras oito pessoas.

- Desde maio, a denúncia está em análise na Justiça Federal. Se for aceita, o processo será reiniciado. Caso contrário, o MPF poderá recorrer ao Tribunal Regional Federal.



quinta-feira, 14 de novembro de 2013

SISTEMA FALIDO


ZERO HORA 14 de novembro de 2013 | N° 17614


EDITORIAIS



Com a palavra, o desembargador da 7ª Câmara Criminal do Estado, José Antônio Daltoé Cezar: O Estado está se demitindo da sua função, que é de cuidar da segurança pública, e os bandidos continuam nas ruas. Não tem como prender criminosos se não existir presídio. Tem gente que diz: a polícia prende e o Judiciário solta. O Judiciário não solta. A verdade é que não tem onde prender.

A contundente afirmação do juiz, no contexto da reportagem que registra 4,3 mil condenados transitando livremente entre a população do Estado, o equivalente à lotação do Presídio Central de Porto Alegre, é uma verdadeira certidão (negativa, no pior sentido) de falência do sistema prisional gaúcho. Por absoluta falta de espaço – e por visão humanitária dos magistrados, ainda que isso cause compreensível contrariedade das vítimas –, estão sendo libertados condenados por roubo, tráfico de drogas e homicídios, para cumprir prisão domiciliar ou usar as polêmicas tornozeleiras eletrônicas. Ainda que a maioria dos beneficiados pela ilegalidade chancelada pela Justiça seja de delinquentes considerados menos perigosos, em fase final de cumprimento da pena ou condenados por crimes de baixo potencial ofensivo, a verdade é que tal liberalidade contribui para aumentar a sensação de insegurança dos cidadãos.

É tão grave a situação, que o Ministério Público já cogita ingressar com ações de improbidade administrativa contra os gestores da Superintendência dos Serviços Penitenciários e da própria Secretaria de Segurança Pública. A resposta do Executivo é tímida demais para um momento de tamanha gravidade. Alega a Susepe que a adoção de tornozeleiras eletrônicas permite que as vagas do semiaberto sejam extintas, não havendo, portanto, necessidade de mais investimentos nesse tipo de instalação prisional.

Decididamente, não é uma resposta satisfatória para a questão. Como a população pode se satisfazer com uma solução dessas, quando vê a criminalidade aumentar na mesma proporção em que os presos condenados são mandados para casa por falta de cárcere? Imagine-se, por exemplo, os familiares de uma vítima de homicídio tendo que compartilhar os mesmos espaços públicos com o autor do crime. De que adianta saber que ele estará usando a tal tornozeleira?

Pode ser que presídio não dê voto, como se costuma dizer, mas a insegurança certamente tira. Mas nem cabe examinar esta questão sob o aspecto eleitoral, ainda que estejamos na antevéspera de mais um pleito. O que se espera é uma resposta mais pragmática do governo do Estado na forma de investimentos efetivos no sistema prisional, de forma que garanta instalações dignas aos condenados e livre os cidadãos deste convívio promíscuo com criminosos.


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Certamente, o sistema prisional está falido, mas está falido por não ter "sistema", por não estar inserido num "sistema de justiça criminal" e por não ser a execução penal considerada "essencial à justiça" na constituição brasileira.  O que existe no Brasil é uma justiça criminal assistemática, morosa, conivente e que joga a responsabilidade no "Estado", como se o "Estado" fosse apenas o poder administrativo, e o legislativo e o judiciário meros expectadores. Os presos não são estão á disposição da justiça? Não é o judiciário que manda prender e soltar, que determina o regime e que concede as licenças e a liberdade? Não é o judiciário o poder supervisor da execução penal? Que medidas está tomando o judiciário contra esta calamidade social e sub-humana dentro dos presídios?  Ao invés de agir contra os verdadeiros responsáveis por esta situação caótica que viola direitos humanos e dos presos, a justiça e os legisladores preferem sacrificar a paz social permitindo que os presos ficam nas ruas ou nos domicílios a mercê dos interesses das facções, sem controle, monitoramento ou oportunidades, desprezando as consequências lesivas à ordem social, ordem pública e bem estar de uma população enjaulada e aterrorizada pelo medo. 

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

EXECUÇÃO PENAL: DESCASO, DIVERGÊNCIAS E JOGO DE EMPURRA




ZERO HORA 13 de novembro de 2013 | N° 17613

JOSÉ LUÍS COSTA


LIVRES DO CÁRCERE. O Estado tem 4,3 mil presos fora da cadeia


Superintendente da Susepe e secretário da Segurança Pública podem ser acionados pelo Ministério Público pela falta de vagas



O descontrole e a escassez de vagas mandaram para as ruas 4,3 mil presos que deveriam estar em albergues no Estado. São 3,4 mil prisões domiciliares, 700 monitoramentos à distância por meio de tornozeleiras, e outros 200 apenados que foram liberados das grades para esperar vaga em casa.

Aquantidade de criminosos – entre eles condenados por roubo, tráfico de drogas e homicídios – fora das cadeias representa 15,3% da massa carcerária. É como se todos os presos do Presídio Central fossem liberados. Atualmente, estão recolhidos em casas prisionais 28,1 mil detentos, o menor contingente desde 2009. A crise pode resultar em ações de improbidade administrativa contra gestores da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe).

A Susepe garante ter criado 2,9 mil vagas nos últimos três anos, mas a redução da população carcerária está ligada à soltura de apenados dos regimes aberto e semiaberto por falta de espaço e descontrole em albergues.

As liberações se tornaram uma constante em 2010. Preocupados com a superlotação, juízes de varas de execuções criminais de diferentes regiões do Estado começaram a mandar para casa presos do regime aberto, sob forma de prisão domiciliar. Em tese, são aqueles considerados menos perigosos porque estão em fase final do cumprimento de pena ou foram condenados por crimes de baixo potencial ofensivo – um levantamento da Vara de Execuções Criminais (VEC) da Capital apontou que apenas 4% dos presos em flagrante na Grande Porto Alegre são egressos do regime aberto. A estratégia era abrir vagas nos albergues e colônias penais, mas a iniciativa não surtiu o efeito desejado.

Ao longo dos tempos, começaram a bater às portas do Tribunal de Justiça do Estado (TJ) ações requerendo a ampliação da prisão domiciliar também para presos do regime semiaberto sob o mesmo argumento: superlotação e más condições dos albergues.

E o número de presos encarcerados começou a despencar a partir de 2010, pela primeira vez em décadas. Entretanto, não abriu espaço nos albergues. Incêndios, vendavais e interdições judiciais por causa de deficiências estruturais, descontrole, falta de segurança e assassinatos levaram ao fechamento de mais de mil vagas, somente na Região Metropolitana.

No começo do ano, a Susepe prometeu, por duas vezes, reduzir o déficit com o aluguel de prédios para gerar 300 vagas para o regime semiaberto na Grande Porto Alegre, mas desistiu da ideia ao adotar o sistema de vigilância com tornozeleiras, com aval de varas de execuções.

O Ministério Público tem recorrido ao TJ, tanto das decretações de prisões domiciliares quanto do monitoramento eletrônico, sob o argumento de que a forma adotada fere a legislação.

– Somos contra tornozeleiras como mecanismo de cumprimento de pena por falta de vagas. Do jeito que vai, não duvido que, daqui a pouco, vão querer colocar tornozeleiras nos presos do fechado e mandá-los para casa – afirma o promotor João Pedro Freitas Xavier, assessor da Procuradoria de Recursos.

Prisão domiciliar se tornou alternativa para falta de vagas

O TJ ainda não tem posição firmada sobre os temas. As decisões se dividem. Uma parte acolhe, outra rejeita os recursos do MP que, inclusive, ingressou com um recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal.

O defensor Álvaro Roberto Antanavicius Fernandes, dirigente do Núcleo de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado, entende que a prisão domiciliar se tornou um remédio alternativo para a crônica crise de vagas.

– Diante da omissão do Estado em manter estabelecimentos prisionais adequados, não se pode impor um regime mais gravoso (pesado) do que aquele fixado ao apenado para cumprimento da pena – afirma.

O juiz Sidinei Brzuska, da VEC da Capital, diz que, por causa do descontrole nos albergues, faz pouca diferença se o preso está ou não recolhido – em três anos, ocorreram 22 mil fugas no Estado, metade na Região Metropolitana.

O magistrado diz ser contra a prisão domiciliar para presos do semiaberto, mas apoia o projeto das tornozeleiras por ser o menos ruim para a sociedade.

– Entre deixar o preso solto, seja pelas condições precárias nos albergues ou prisão domiciliar, a melhor opção é a vigilância eletrônica. Ao menos, ele será monitorado, e o Estado não tem de pagar estadia, comida, água e luz.



Promotores podem entrar com ações contra gestores


ADRIANA IRION

Os promotores que atuam na execução criminal de Porto Alegre encaminharam à Procuradoria-geral de Justiça pedido para que sejam apuradas as responsabilidades civil e criminal de autoridades do Executivo que deveriam promover a criação de vagas no sistema penitenciário.

A solicitação foi feita a partir de uma decisão do juiz Luciano Losekann, da Vara de Execuções Criminais, na qual ele questiona a concessão de prisão domiciliar especial – que não está prevista em lei – a detentos como forma de driblar a falta de vagas no regime semiaberto.

O pedido dos promotores, que pode resultar em abertura de inquérito civil contra o superintendente da Susepe, Gelson Treiesleben, e o secretário da Segurança Pública, Airton Michels, está em análise na Promotoria de Defesa do Patrimônio Público.

Ao se manifestar no processo de um preso, Losekann registrou que a gestão do sistema prisional passou a ser de responsabilidade de juízes, já que a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) teria se “demitido” das suas atribuições. E foi contundente ao destacar o papel do Executivo no problema: “... mexa-se o Poder Executivo do Estado, pois este está a gerar insegurança pública, não apenas ao descumprir ordens judiciais de remoção ao semiaberto, mas também os gestores da coisa pública estão a cometer improbidade administrativa por não adotarem as providências que lhe competem e para as quais, diga-se, sem rodeios, foram eleitos!”, diz trecho da manifestação.

Uma das promotoras que atuam na execução criminal na Capital, Ana Lucia Cioccari Azevedo diz que “ações e omissões de quem tem o dever legal de gerar vagas têm de ser apuradas”.

– Os presos estão recebendo da Susepe atestados de que não há vagas no semiaberto e estão sendo inscritos em planilhas por antiguidade a fim de concorrer a uma vaga, só que vagas não estão sendo criadas. A sociedade precisa saber que crimes estão impunes, que há insegurança nas ruas e que estabelecimentos prisionais estão sendo fechados – diz Ana Lucia.

“demitido” das suas atribuições. E foi contundente ao destacar o papel do Executivo no problema: “... mexa-se o Poder Executivo do Estado, pois este está a gerar insegurança pública, não apenas ao descumprir ordens judiciais de remoção ao semiaberto, mas também os gestores da coisa pública estão a cometer improbidade administrativa por não adotarem as providências que lhe competem e para as quais, diga-se, sem rodeios, foram eleitos!”, diz trecho da manifestação.

Uma das promotoras que atuam na execução criminal na Capital, Ana Lucia Cioccari Azevedo diz que “ações e omissões de quem tem o dever legal de gerar vagas têm de ser apuradas”.

– Os presos estão recebendo da Susepe atestados de que não há vagas no semiaberto e estão sendo inscritos em planilhas por antiguidade a fim de concorrer a uma vaga, só que vagas não estão sendo criadas. A sociedade precisa saber que crimes estão impunes, que há insegurança nas ruas e que estabelecimentos prisionais estão sendo fechados – diz Ana Lucia.




O desabafo de um desembargador


Em 24 de outubro, a 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado decidiu por unanimidade que detento do semiaberto deveria cumprir pena em prisão domiciliar. Embora reconheçam que a determinação contraria o previsto na Lei de Execução Penal, desembargadores ressaltaram que a situação vivida pelo condenado também fere a lei, ao não ser proporcionada a ele condição para cumprir a pena. Relator do processo, o desembargador da 7ª Câmara Criminal, José Antônio Daltoé Cezar, desabafa.

“Em outros processos, eu neguei a prisão domiciliar, mas mudei de posição. Converso com colegas que relatam que o sistema penitenciário, principalmente na Grande Porto Alegre, está falido. O Estado está se demitindo da sua função, que é de cuidar da segurança pública, e os bandidos continuam nas ruas.

O governo tem de se dar conta de que precisa construir presídios. Não tem como prender criminosos se não existir presídio. E não tem como cumprir a lei. O semiaberto não tem vagas, e as que existem estão fechando. Aí, vem para nós. O sujeito está no semiaberto, e a Justiça terá de mandar para casa como ocorreu nesse caso. São pessoas perigosas. Toda a máquina trabalha, a Brigada Militar, a Polícia Civil, o Ministério Público, defensores e advogados, juízes, servidores.

O processo chega ao Tribunal, três desembargadores e um procurador atuam no caso para, no final, colocar uma tornozeleira no sujeito e mandá-lo para casa. Tem gente que diz: a polícia prende, e o Judiciário solta. O Judiciário não solta. A verdade é que não tem onde prender. O semiaberto é muito brando. Se um criminoso não tem antecedentes, rouba um carro, vai para o semiaberto. E ele, por inércia do Estado, está recebendo tornozeleira.”



ENTREVISTA - “Eu sou juiz, não sou gestor da Susepe”

LUCIANO ANDRÉ LOSEKANN, juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre



Zero Hora – O senhor estabeleceu critérios mais rigorosos para conceder prisão domiciliar, mas não há vagas no semiaberto. O que vai acontecer?

Luciano André Losekann – A Susepe vai ter de começar a administrar o problema. Isso deve gerar de início uma superlotação, mas essa é uma situação que a Susepe tem de administrar. Não é o Poder Judiciário. É necessário chamar a administração, o governo do Estado à responsabilidade.

ZH – O senhor saiu da VEC para atuar por mais de três anos no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O que mais o impressionou nesse retorno?

Losekann – O absoluto descontrole da Susepe sobre a gestão penitenciária. Isso é o mais assustador. Como o Estado conseguiu se demitir de suas funções. Não tem em outras unidades essa falta de vontade de administrar, não se compara à demissão de atribuições a que se submeteu a Susepe.

ZH – O que a Susepe deixa de fazer?

Losekann – Tudo. Não cumpre ordens judiciais, não cria vagas no semiaberto, não há projetos sólidos para a criação de vagas. Há uma inapetência, uma falta de vontade de resolver a situação, transferindo para o Judiciário a gestão do órgão penitenciário. Eu sou juiz, não sou gestor da Susepe. Ouço todos os dias notícias de presos com tornozeleira sendo pegos, preso em domiciliar que cometeu novo delito. Por dia, eu revogo cinco prisões domiciliares. Em 20 dias úteis de trabalho, são cem pessoas cometendo delitos em prisão domiciliar, que também precisa de fiscalização.

ZH – Tem fiscalização?

Losekann – Deve ser feita pela Susepe, que não faz. Então, estou atraindo para mim uma responsabilidade que não é minha. O sistema é da Susepe. Não fiz concurso para agente penitenciário nem fui nomeado pelo governador superintendente da Susepe.



CONTRAPONTOS

O que diz a Superintendência dos Serviços Penitenciários - 

Sobre críticas do Judiciário referente a promessas que não são cumpridas - Desconhecemos tal crítica. A Susepe já criou nos últimos três anos 2.313 vagas de regime fechado e 590 de semiaberto. Além disso, estão em andamento diversas outras obras, tanto no regime fechado quanto no semiaberto.

Sobre 3,4 mil criminosos estarem em casa, somente em prisão domiciliar, no Estado, por falta de vagas - É importante ressaltar que a prisão domiciliar não está subordinada à Susepe. É uma decisão e controle exclusivos do Judiciário. São vários os motivos para o Judiciário determinar a prisão domiciliar.

Sobre vagas geradas para os regimes semiaberto e aberto este ano na Região Metropolitana - Com o convênio firmado entre a Susepe e o Judiciário de colocar presos do semiaberto com tornozeleiras, o que está acontecendo é exatamente o contrário, as vagas do semiaberto estão sendo extintas, como ocorreu com o Instituto Penal de Torres, que foi fechado, e o Instituto Penal de Viamão, em vias de extinção. Outros institutos penais deverão seguir o mesmo caminho, pois, atualmente, há 721 detentos usando tornozeleiras, e a programação prevê mais de 4 mil em todo o Estado.

Sobre aluguel de prédios que gerariam 300 vagas para o semiaberto na Região Metropolitana - A Susepe desistiu das locações. Atualmente, há um processo para construir um anexo no Instituto Penal de Novo Hamburgo com 150 vagas. Com um convênio firmado entre a Susepe e o Judiciário para colocar tornozeleiras nos presos do semiaberto da Região Metropolitana, diminuiu o número de detentos neste regime, e o maior exemplo é o Instituto Penal de Viamão, que atualmente tem apenas 15 apenados, e já esteve com cerca de 600 presos, e o Instituto Penal Pio Buck, que hoje tem 95 detentos e já esteve também acima de 600 presos.


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA -  Este fato é mais um que revela a inoperância e impotência da justiça criminal brasileira, especialmente quando se defronta com o poder político.

Ao Poder Executivo Estadual incumbe a guarda e a custódia de presos no RS, e dele deve partir os investimentos para construção de presídios regionais e municipais, abrigo digno aos apenados, dotação da guarda penitenciária, manutenção de colônias penais agrícolas e industriais, escolarização e profissionalização dos presos e políticas para atender os objetivos da execução penal que é a reeducação, reinclusão e ressocialização dos apenados da justiça.

O Poder Judiciário é o poder que manda prender, condena, manda soltar, determina o regime penal, concede benefícios penais e supervisiona a execução penal. A Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984, que institui a Lei de Execução Penal, determina que a "execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado", sob  "jurisdição penal dos Juízes ou Tribunais da Justiça ordinária". O artigo nº 65 determina que "a execução penal competirá ao Juiz indicado na lei local de organização judiciária e, na sua ausência, ao da sentença". E o artigo nº 66 estabelece o que compete ao juiz de execução, entre eles

"V - determinar:
a) a forma de cumprimento da pena restritiva de direitos e fiscalizar sua execução;(...)
VI - zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança;
VII - inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providências para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade;
VIII - interditar, no todo ou em parte, estabelecimento penal que estiver funcionando em condições inadequadas ou com infringência aos dispositivos desta Lei;
IX - compor e instalar o Conselho da Comunidade."

O Ministério Público também tem responsabilidade fiscal na execução penal estabelecida no artigo 67 - "O Ministério Público fiscalizará a execução da pena e da medida de segurança, oficiando no processo executivo e nos incidentes da execução".

Todas estas competências fazem parte de processos e ações de um sistema justiça criminal (inexistente no Brasil) e estas divergências são reflexos da forma assistemática como ela funciona no Brasil - morosa, divergente, burocrata, negligente, permissiva, condescendente, personalista, sem preocupação com os direitos humanos, impotente contra o poder político e onde o jogo de empurra é rotina e as soluções são sempre pontuais, superficiais e geralmente afrontam a segurança da população e abandonam os presos á própria sorte.

Que me desculpem as autoridades do Poder Judiciário e do MP, mas, como supervisores e fiscais da execução penal, estão sendo omissos, já que deveriam agirem de imediato denunciando e processando o Governador do Estado, chefe do Poder Executivo, promotor da calamidade prisional praticada no RS que submete presos da justiça a maus tratos e condições sub-humanas de superlotação, insegurança, ociosidade, permissividade, insalubridade, drogadição, aliciamento pelo crime e domínio de facções, que obriga os juizes de execução interditar presídios e deixar nas ruas apenados desamparados, sem controle e impunes que colocam a população em risco de vida e perda de patrimônios. Além disto, o poder judiciário deveria olhar para o umbigo, pois a morosidade é uma das causas da superlotação prisional. A postura da justiça até agora demonstra impotência e fraqueza diante do poder político, pois permite que esta situação se perenize,  deixando de denunciar o governador e avalizando leis condescendentes para com os autores de delitos (Lei 12.403/2011), sem se preocupar com a segurança da população. E, esta "fraqueza" fica explícita quando aponta responsabilidades para a Secretaria de segurança e para a Susepe, órgãos que administram , mas sem qualquer poder para conseguir os investimentos necessários nesta área.

Por fim. Acredito que a solução a médio prazo está na criação de um SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL forte, integrado, ágil, desburocratizado, comprometido com a paz social e independente tecnicamente, capaz de definir os papéis e atribuições dos poderes, instituições e órgãos envolvidos na prevenção dos delitos, na repressão, na contenção, na apuração, na prisão, no processo, no julgamento e execução penal digna e voltada à ressocialização , reeducação e reinclusão dos apenados. E para isto é necessário exigir uma lei específica no Congresso Nacional. Este sistema seria capaz de enfrentar as omissões, negligências e improbidades do poder político nesta área tão essencial à quebra do ciclo da criminalidade e ao interesse público da vida, ao patrimônio e ao bem-estar da população. 

terça-feira, 12 de novembro de 2013

COMPETÊNCIA PARA INVESTIGAR PODE CRIAR IMPASSE NA JUSTIÇA




O ESTADO DE S.PAULO, 12.novembro.2013 07:00:38

Competência para investigar caso Alstom/Siemens pode criar impasse na Justiça


Cartel está sob investigação da PF, do Ministério Público Federal e da promotoria estadual; executivos Éverton Rheinheimer e Jan-Malte Hans Jochen Orthmann fizeram delação premiada

por Fausto Macedo

O caso Alstom/Siemens pode entrar num impasse sobre qual órgão público detém competência legal para investigar as ramificações do cartel metroferroviário que teria se instalado em setores de governos do PSDB em São Paulo, entre 1998 e 2008 (administrações Mário Covas, Geraldo Alckmin e José Serra).

A investigação, atualmente, está sob responsabilidade de diversas instituições, no âmbito estadual e no federal.

No Ministério Público Estadual de São Paulo está em curso um Procedimento de Investigação Criminal (PIC), sob responsabilidade do Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (GAECO).

As primeiras revelações sobre suposto direcionamento em licitações no setor de transporte público de massa foram feitas por dois executivos citados no acordo de leniência da Siemens com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), vinculado ao Ministério da Justiça.

Éverton Rheinheimer , brasileiro, e Jan-Malte Hans Jochen Orthmann, alemão, aceitaram acordo de delação premiada, proposto pelo Ministério Público Estadual. O acordo ainda não foi homologado pela Justiça Estadual.


Multinacional francesa é investigada por suposto envolvimento em esquema de cartel no metrô de São Paulo. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Éverton Rheinheimer e Jan-Malte Hans Jochen Orthmann passaram importantes informações sobre o cartel. Não citaram nomes de agentes públicos, por enquanto. Um deles acenou com a possibilidade de, em novo relato, apontar nomes da administração pública que teriam recebido propinas.

Nessa apuração, os promotores se reportam à Justiça estadual. De outro lado, a Polícia Federal toca inquérito que já identificou crimes de competência da União, como lavagem de dinheiro e manutenção de ativos depositados na Suíça sem comunicação ao Banco Central.

A PF se reporta à 6.ª Vara Criminal da Justiça Federal – que, a pedido da PF, decretou bloqueio de R$ 56,45 milhões de investigados do caso Alstom/Siemens.

O impasse está aí, no plano criminal. O Ministério Público Estadual rastreia pelo menos 30 contratos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e do Metrô de São Paulo firmados naquele período. Os promotores do Ministério Público Estadual avaliam que a competência sobre tal missão é deles porque o cartel teria promovido desvios de recursos do Tesouro do Estado.

A PF, por seu lado, aponta corrupção ativa e passiva e lavagem de dinheiro – crimes que envolvem o engenheiro João Roberto Zaniboni, ex-diretor e da CPTM, e outros investigados. A PF está de posse de documentos enviados pela Suíça que revelam depósitos de US$ 836 mil na conta Milmar, no Credit Suísse de Zurique, de titularidade de Zaniboni.

Autorizada pela Justiça Federal, a PF juntou aos autos do inquérito do caso Siemens provas colhidas no âmbito do caso Alstom.

A PF também convenceu dois executivos de multinacionais a fazerem acordo de delação premiada. Os relatos desses executivos e os documentos enviados pela Suíça deram suporte ao confisco de bens de alguns investigados do caso Alstom/Siemens.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

INVESTIGAÇÃO E HARMONIA


ZERO HORA 11 de novembro de 2013 | N° 17611

ARTIGOS


 Cláudio Brito*



Há poucos meses, o Brasil vivia a inquietação de uma proposta de emenda à Constituição que reduziria o poder de investigar de várias instituições, do Ministério Público em especial. Era a PEC 37, que foi combatida nas primeiras manifestações de rua em junho, o que abreviou a rejeição da ideia pelos parlamentares, sensibilizados pelo clamor popular em tempo menor do que qualquer outra frente de interessados conseguiria.

Ainda bem que foi assim.

O sepultamento daquela emenda, entre outras saudáveis consequências, ensejou o sucesso da operação conjunta de promotores, técnicos federais da área da agricultura, peritos, fiscais estaduais de tributos, policiais civis e militares que, em ação muito bem coordenada, coesa e harmônica, flagraram novas ocorrências de adulteração de leite no Rio Grande do Sul. Para tanto, seguiram indicações de empresas do setor, que assumiram o compromisso dessa colaboração em ajustamento de conduta decorrente de atos investigatórios anteriores.

Se o Ministério Público e os fiscais do Ministério da Agricultura não pudessem investigar, como seria? E o que dizer se fosse impedida a atuação dos fiscais da Receita Estadual? Foi muito importante reunir notas fiscais e documentos que comprovaram que transportadores compraram produtos químicos usados para corromper o leite. Isso possibilitou a descoberta e apreensão de água oxigenada, bicarbonato e outras substâncias. As próximas etapas terão suporte nessas provas. Foi com as marcas da coesão e da harmonia que se deu a atuação de cada órgão público envolvido em toda a apuração. Somaram-se os promotores Mauro Rockenbach, da Promotoria Especializada Criminal, Alcindo Bastos, da Defesa do Consumidor, e Pablo Alfaro, da Promotoria de Três de Maio, cercando os fatos de todos os jeitos, de acordo com a atribuição de cada um.

Não há outra forma de se enfrentar o crime organizado. Tem que haver organização na resposta aos quadrilheiros. Sem conflitos, quase sempre inspirados na vaidade. Harmonia em cada equipe e no conjunto de todos os órgãos. Desentendimento é o que não cabe. Foi com essa receita que se chegou à vitoriosa investigação. Que nos sirva de advertência. Nunca mais haja espaço a propostas que restrinjam o poder dos promotores e fiscais tributários para realizarem investigações.


*JORNALISTA

terça-feira, 5 de novembro de 2013

O PREÇO DO ATRASO NA SEGURANÇA

ZERO HORA 05 de novembro de 2013 | N° 17605

ARTIGOS
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*


A publicação da sétima edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ocorrida nesta semana, representa um passo importante na consolidação de um trabalho sistemático de coleta e análise de dados sobre segurança pública no Brasil. Os dados publicados nesta edição, se ainda apresentam lacunas decorrentes da precariedade das bases de dados governamentais, permitem uma visão de conjunto das taxas de violência letal, da letalidade policial, dos investimentos na área e da situação carcerária em todos os Estados da federação.

Sobre a situação carcerária, os dados publicados, originados do Departamento Penitenciário Nacional, referentes ao ano de 2012, demonstram que naquele ano chegamos a um total de 549.786 presos, maior população carcerária de toda a história, com um crescimento de 8,6% do total de presos em relação ao ano anterior, representando uma taxa de encarceramento de 401,7 presos por 100 mil habitantes maiores de 18 anos.

Conforme os dados do Depen, o aumento da opção pelo encarceramento no Brasil não é acompanhado pela garantia das condições carcerárias, contribuindo para a violência no interior do sistema, a disseminação de doenças e o crescimento das facções criminais. Em 2011, o déficit era da ordem de 175.841 vagas. Já em 2012, esse número passa para 211.741, num crescimento de 20% no curto período de um ano, chegando a média nacional a 1,7 preso por vaga no sistema.

Sem a garantia de vagas no sistema, e com o crescimento do número de presos a cada ano, parece evidente que as prisões no Brasil acabam por assumir um papel criminógeno, reforçando os vínculos do apenado com a criminalidade e deslegitimando a própria atuação do Estado no âmbito da segurança pública. A responsabilidade aqui pode ser compartilhada pela União e pelos Estados, responsáveis pela garantia das vagas carcerárias, pelo Congresso Nacional, incapaz de avançar na reforma da legislação penal e na definição de uma política criminal mais racional, e do Poder Judiciário, que pela morosidade e atuação seletiva acaba por agravar a situação por meio das altas taxas de encarceramento provisório.

Sobre as estruturas policiais, os dados publicados no Anuário confirmam as altíssimas taxas de letalidade e vitimização policial, reforçando a urgência das reformas estruturais que estabeleçam requisitos mínimos nacionais no que diz respeito à formação e remuneração das polícias, mecanismos de controle externo efetivo, prestação de contas e controle do uso da força. Medidas que conduzam à necessária desmilitarização das práticas policiais e ao aumento da eficiência no esclarecimento de crimes, com o estabelecimento do ciclo completo de policiamento e a instituição de uma carreira única de polícia. Reformas urgentes, e que a cada adiamento cobram um preço muito alto em vidas humanas, como mostram as taxas de homicídio, acima das 50 mil mortes no ano de 2012.

*SOCIÓLOGO, PROFESSOR DA PUCRS E PESQUISADOR DO INCT-INEAC


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Conheço o prof. Rodrigo. Ele e o prof. José Vicente são estudiosos do assunto e se posicionam muito bem nas análises críticas nas questões de segurança pública. Este artigo coloca muito bem as mazelas dos instrumentos com responsabilidade direta nas questões de ordem e seguranças pública que fomentam níveis de criminalidade perto do índice máximo previsto pelo Control Risks Group que é a fase de terrorismo e guerrilha. Entretanto, o Rodrigo comete o mesmo erro de outros especialistas que colocam a culpa apenas nas forças policiais e carcerárias como se estas fossem o sistema capaz de deter as altas taxas de criminalidade, de "violência letal" e "da letalidade policial", ou melhorar os "investimentos na área" e  a "situação carcerária em todos os Estados da federação". 

Para tirar o "atraso" e atingir o interesse público da segurança pública à população, como finalidade, objetivo e dever de Estado (Poderes) é prioridade reconhecer as atividades policiais e carcerárias como funções essenciais à justiça criminal, portanto inseridas num Sistema de Justiça Criminal junto ao judiciário, ministério público e defensoria, ao invés de as manterem isoladas, discriminadas e sob jugo e gerenciamento estratégico, técnico, operacional e partidário do poder político que está exercendo o mandato. Só assim, poderemos  discutir cada uma das propostas deste artigo.

INQUÉRITO POLICIAL SOB A ÓPTICA DO DELEGADO DE POLÍCIA



Âmbito Jurídico



Mário Leite de Barros Filho


Resumo: Este trabalho estuda e analisa o inquérito policial sob a ótica do delegado de polícia. A presente matéria, de maneira despretensiosa, procura adequar o instituto do inquérito policial à nova ordem jurídico-constitucional. Este trabalho, divergindo da doutrina tradicional, considera o inquérito policial como instrumento de promoção de justiça criminal, na medida em que este procedimento, durante a materialização da investigação criminal, concilia as garantias individuais da pessoa investigada com o direito à segurança da população.

Palavras-chave: Inquérito Policial; Procedimento Investigatório; Investigação Criminal; Polícia Civil; Polícia Judiciária; Polícia Repressiva; Elucidação de Crimes; Direitos e Garantidas Individuais; Contraditório Mitigado; Ação Penal; Segurança Pública; e Justiça Criminal.

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Conceito; 3 – Necessidade do Inquérito Policial; 4 – Fundamento de Validade; 5 – Natureza Jurídica; 6 – Finalidade; 7 – Processo ou Procedimento; 8 – Jurisdição e Competência; 9 – Valor Probatório na Busca da Verdade Real; 10 – Principais Características; 11 – Providências Preliminares; 12 – Início do Inquérito Policial; 13 – Rito; 14 – Incomunicabilidade; 15 – Prazos para Encerramento; 16 – Conclusão; 17 – Arquivamento; 18 – Inquéritos Extrapoliciais; 19 – Bibliografia.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho procura, de maneira despretensiosa, adequar o conjunto de normas e princípios que fundamentam o inquérito policial ao ordenamento jurídico vigente, sob a ótica do delegado de polícia, com o objetivo de uniformizar os atos de polícia judiciária, que formalizarão a investigação criminal, padronizando a atuação e integrando a Polícia Civil brasileira.

A Constituição Federal de 1988, além de ampliar os direitos e garantias individuais, estabeleceu um novo modelo de atuação estatal.

As Constituições anteriores estabeleciam apenas limites à atividade do Estado, protegendo os direitos e garantias individuais. São os direitos de defesa das pessoas com relação às violações praticadas pelos representantes do Estado, chamados “direitos negativos” ou “liberdades públicas”.

Com a evolução e humanização da sociedade, o Estado assumiu um novo papel no que se refere à proteção da dignidade humana.

O Estado deixou a posição de mero coadjuvante, assumindo a condição de protagonista da promoção e defesa dos direitos e garantias individuais. São os denominados direitos positivos, pois reclamam não a abstenção, mas a presença do Estado em ações voltadas à proteção destes direitos.

Por outro lado, a atividade de investigação criminal, principal atribuição da Polícia Judiciária, pela sua natureza invasiva, viola, muitas vezes, direitos individuais das pessoas investigadas.

Em decorrência da característica invasiva, os princípios consagrados pela chamada “Constituição Cidadã”, notadamente, aqueles que tutelam a dignidade humana, incidem sobre as atividades de Polícia Judiciária.

Entre estes dogmas constitucionais se destacam os seguintes princípios:

- Inviolabilidade da intimidade, da vida privada, honra e imagem das pessoas:

“Art. 5º. (...) X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”

- Inafastabilidade do controle do Poder Judiciário:

“Art. 5º. (...) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”

- Proíbe os chamados “juizados de exceção”:

“Art. 5º. (...) XXXVII – não haverá juízo ou tribuna de exceção;”

- Garantia do “sistema de persecução criminal acusatório”:

“Art. 5º. (...) LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

Art. 144. (...) § 4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvadas a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.”

- Devido processo legal:

“Art. 5º. (...) LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”.

- Contraditório e ampla defesa:

“Art. 5º. (...) LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”.

- Presunção de inocência:

“Art. 5º. (...) LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;”

Neste contexto, a essência da Polícia Civil, o perfil do delegado de polícia, as características da investigação criminal e a natureza do inquérito policial precisaram se adequar aos princípios estabelecidos pela nova ordem constitucional.

De um lado, a Polícia Civil, apesar de vinculada ao Poder Executivo, assumiu o papel de órgão auxiliar da justiça criminal.

De outro, o delegado de polícia se transformou em um operador do direito, que domina a ciência da investigação criminal, com a responsabilidade de conciliar a segurança pública e a proteção da dignidade humana, no exercício da relevante atribuição de repressão criminal.

Por sua vez, a investigação criminal, realizada pela Polícia Judiciária, se tornou uma garantia do cidadão contra imputações levianas e açodadas em juízo, sem comprometer a sua finalidade precípua de elucidar as circunstâncias e a autoria dos delitos.

2. CONCEITO

A doutrina clássica considera o inquérito policial como um procedimento dispensável, de natureza inquisitiva, meramente preparatório da ação penal.

Os defensores dessa corrente entendem que o inquérito policial é apenas um conjunto de diligências investigatórias realizadas pela Polícia Judiciária, visando à apuração do crime e sua respectiva autoria.

Entretanto, diante da necessidade de compatibilizar a atuação da Polícia Judiciária com o ordenamento jurídico vigente, principalmente, no que se refere aos direitos individuais da pessoa investigada, o inquérito policial se revestiu de novo aspecto.

O inquérito policial se transformou em um instrumento de promoção de justiça criminal, por intermédio da busca da verdade real das circunstâncias e da autoria dos delitos, realizado pela Polícia Civil, tendo como destinatário o Poder Judiciário.

O procedimento que materializa as investigações criminais é considerado instrumento de promoção de justiça criminal, na medida em que concilia a defesa dos direitos e garantias individuais da pessoa investigada com a atividade de repressão criminal.

De outra parte, a elucidação do crime, por intermédio da busca da verdade real, revela o caráter imparcial da investigação realizada pela Polícia Judiciária.

Efetivamente, a Polícia Judiciária, por não ser parte, não se envolve e nem se apaixona pela causa investigada.

É importante consignar que o delegado de polícia não está vinculado à acusação ou à defesa, pois, agindo como um magistrado, tem apenas compromisso com a verdade dos fatos.

Efetivamente, a Polícia Civil, não obstante esteja atrelada à estrutura do Poder Executivo, exerce a atribuição de auxiliar da justiça criminal.

Neste sentido, vale lembrar que o ordenamento normativo brasileiro adotou o chamado “sistema de persecução criminal acusatório”.

Tal sistema se caracteriza por ter, de forma bem distinta, as figuras do profissional que:

- Investiga (delegado de polícia auxiliar do Poder Judiciário);

- Defende (Advogado);

- Acusa (integrante do Ministério Público); e

- Julga (magistrado) o crime.

O citado sistema oferece condições para o delegado de polícia trabalhar sem a preocupação de produzir provas para absolver (defesa) ou condenar (acusação) o investigado.

Finalmente, em harmonia com as diretrizes da corrente doutrinária adotada neste trabalho, o destinatário do inquérito policial é o Poder Judiciário, uma vez que as diligências investigatórias, realizadas para elucidar o crime, não têm como finalidade o oferecimento de denúncia pelo representante do Ministério Publico ou a apresentação de defesa pelo advogado do investigado.

Como restou demonstrado, a investigação criminal visa à busca da verdade real do fato criminoso.

Ademais, o inquérito policial se destina ao Judiciário, porque é o Poder incumbido de verificar a legalidade dos atos de polícia repressiva.

Ressalte-se que tal assertiva está em consonância com o princípio da inafastabilidade do controle do Poder Judiciário, previsto no Inciso XXXV, art. 5º, da CF.

Art. 5º. (...) XXXV – A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

3. NECESSIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL

Em razão da importância da questão da dispensabilidade do inquérito policial, o referido tema será tratado em um tópico específico neste trabalho.

Atualmente, a doutrina tradicional entende que o inquérito policial, apesar de ser uma peça importante, não é imprescindível.

Os defensores dessa corrente alegam que o inquérito policial não é uma etapa obrigatória da persecução penal, pois poderá ser dispensado sempre que o integrante do Ministério Público ou o ofendido tiver elementos suficientes para promover a ação penal.

Os doutrinadores baseiam tal entendimento no fato de o art. 12, do Código de Processo Penal, utilizar a expressão “sempre que”, que significa uma condição.

“Art. 12. O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra”. (grifei)

Da mesma forma, porque o art. 27, do CPP, que trata da delatio criminis postulatória, estabelece que qualquer um do povo poderá fornecer, por escrito, informações sobre o fato e a autoria, indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção.

Essa circunstância significa, no entender de alguns estudiosos, que quando tais informações forem suficientes não é necessário o inquérito policial:

“Art. 27. Qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, nos casos em que caiba a ação pública, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção.” (grifei)

No mesmo sentido, o § 5º, do art. 39, do CPP, estabelece que o integrante do Parquet dispensará o inquérito se forem apresentados elementos suficientes para a propositura da ação:

“Art. 39. O direito de representação poderá ser exercido, pessoalmente ou por procurador com poderes especiais, mediante declaração, escrita ou oral, feita ao juiz, ao órgão do Ministério Público, ou à autoridade policial.

§ 5º. O órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo de 15 (quinze) dias.” (grifei)

Finalmente, para os adeptos da aludida tese, o § 1º do art. 46, descreve mais uma hipótese de dispensabilidade do inquérito policial:

“Art. 46. O prazo para oferecimento da denúncia, estando o réu preso, será de 5 (cinco) dias, contado da data em que o órgão do Ministério Público receber os autos do inquérito policial, e de 15 (quinze) dias, se o réu estiver solto ou afiançado. No último caso, se houver devolução do inquérito à autoridade policial (art. 16), contar-se-á o prazo da data em que o órgão do Ministério Público receber novamente os autos.

§ 1º. Quando o Ministério Público dispensar o inquérito policial, o prazo para o oferecimento da denúncia contar-se-á da data em que tiver recebido as peças de informações ou a representação”. (grifei)

Coerente com as diretrizes anteriormente estabelecidas, principalmente, no que se refere ao entendimento doutrinário que a investigação criminal, realizada pela Polícia Judiciária, se transformou em um instrumento de defesa dos direitos e garantias individuais, adota-se nesta obra a posição jurídica de que o inquérito policial é necessário

De fato, o inquérito policial, nos dias de hoje, é uma ferramenta de efetivação dos direitos estabelecidos pelo devido processo legal.

Na verdade, o inquérito policial concretiza os direitos do due process of law, em primeiro lugar, porque impede que a ação penal seja desencadeada, de forma açodada e desnecessária, comprometendo indevidamente a credibilidade das pessoas.

Com efeito, depois da promulgação da chamada “Constituição cidadã”, não se admite nenhuma acusação desprovida de elementos de convicção.

Neste sentido, a Professora Ada Pellegrini Grinover[1] leciona que:

“o processo criminal como sendo um dos maiores dramas para a pessoa humana; por isso é que se exige um mínimo de fumo do bom direito para sua instauração”.

Na mesma linha de raciocínio, observa-se na exposição de motivos do próprio Código de Processo Penal razões suficientes para considerar imprescindível o inquérito policial:

“... há em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo à propositura da ação penal, um argumento dificilmente contestável: é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a sugestões tendenciosas. Não raro, é preciso voltar atrás, refazer tudo, para que a investigação se oriente no rumo certo, até então despercebido. Por que, então, abolir-se o inquérito preliminar ou instrução provisória, expondo-se a justiça criminal aos azares do detetivismo, às marchas e contramarchas de uma instrução imediata e única? Pode ser mais expedito o sistema de unidade de instrução, mas o nosso sistema tradicional, com o inquérito preparatório, assegura uma justiça menos aleatória, mais prudente e serena.” (grifei)

Os direitos e garantias individuais, notadamente, os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas são violados quando o integrante do Ministério Público, com suposto fundamento no art. 27 e § 5º, do art. 39, do Código de Processo Penal, dispensa o inquérito policial e oferece a denúncia com base apenas nas informações sobre o fato e autoria, muitas vezes infundadas, contidas em representação formulada por pessoa do povo.

Em virtude dos danos que a instauração precipitada da ação penal acarretam, tais informações, de acordo com a nova ordem constitucional, precisam ser confirmadas pela Polícia Judiciária, antes de serem utilizadas pelo órgão da acusação.

Tal assertiva conduz à conclusão que os arts. 12; 27; o § 5º, do art. 39; o § 1º, do art. 46, todos do Código de Processo Penal, que consideram o inquérito policial um procedimento dispensável, não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988.

Como se sabe, o fenômeno da recepção assegura a preservação do ordenamento jurídico anterior e inferior à nova Constituição, desde que, com ela, se mostre materialmente compatível.

Com efeito, a doutrina ensina que, quanto às leis infraconstitucionais que foram editadas sob fundamento de validade de Constituição anterior, não haverá necessidade de votação de novas leis, tendo em vista que, se uma determinada lei editada antes for compatível com a nova Constituição, será recepcionada por esta, possuindo, então, um novo fundamento de validade.

Por outro lado, caso as leis infraconstitucionais não sejam compatíveis com a nova Constituição, perderão a validade.

Assim, um dispositivo que não for recepcionado será considerado inválido.

Os aludidos preceitos não foram recepcionados pela nova Carta Política, consequentemente perderam a sua validade.

Em suma, os dispositivos do Código de Processo Penal, que consideram dispensável o inquérito policial, apesar de não terem sido revogados por uma lei posterior, não têm validade, porque não estão em harmonia com a nova Carta Política.

Nesta linha de raciocínio, Luiz Flávio Borges D'Urso[2] entende que o inquérito policial é indispensável:

“Fico a meditar sobre a origem do inquérito policial, sua utilidade e conveniência e invariavelmente concluo por sua indispensabilidade como supedâneo a enfeixar as provas que são produzidas durante esta importante fase, que é preliminar ao processo criminal, aliás, talvez a fase que justifique o próprio processo.” (grifei)

Mais adiante, o conceituado advogado arremata:

“Assim, nos poucos casos em que o inquérito policial foi dispensado, observamos um descrédito na polícia e na Justiça, aumentando a sensação de impunidade, tão alardeada no país. (grifei)

Ora, dessa forma, advogar a eliminação do procedimento administrativo policial, penso ser um desserviço à nação, pois por meio do Inquérito é que se dá o suporte às provas produzidas e mais, por ele se revela uma cerimônia pré-processual, que tenho como indispensável à credibilidade da Justiça,...

Afastada a ideia da eliminação do inquérito policial, reforcemos os mecanismos de investigação no bojo desse procedimento, melhorando-o e aperfeiçoando-o, com o fito de prestigiar a própria Justiça.”

4. FUNDAMENTO DE VALIDADE

O inquérito policial é fruto da evolução do sumário de culpa, documento elaborado pelos juízes de paz à época da promulgação do Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871, que regulamentou a Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871.

Atualmente, os arts. 4º a 23, do CPP, são as principais normas que fundamentam e disciplinam o inquérito policial.

De outra parte, é importante enfatizar que o inquérito policial tem previsão constitucional.

Efetivamente, o inciso VIII, do art. 129, da CF, menciona expressamente o inquérito policial.

“Art. 129. (...) VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais.” (grifei)

Pelo fato de ter previsão constitucional e ser considerado uma garantia do devido processo legal, defende-se neste trabalho a tese da impossibilidade de aprovação de projeto de lei com proposta de extinção do inquérito policial, até mesmo por intermédio de proposta de emenda à Constituição – PEC, porque essa iniciativa restringe direitos individuais, situação que viola cláusula pétrea prevista no inciso IV, do § 4º, do art. 60, da Constituição Federal:

“Art. 60. (...)

§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – a forma federativa de Estado;

II – o voto direto, secreto, universal e periódico;

III – a separação dos Poderes;

IV – os direitos e garantias individuais.” (grifei)

A investigação criminal, realizada por intermédio de inquérito policial, como foi afirmado, constitui uma das garantias do devido processo legal, instituto relacionado expressamente como direito fundamental no inciso LIV, do art. 5º, da Magna Carta.

Destaque-se que a referida matéria foi disciplinada no art. 5º, da Magna Carta, que se refere aos direitos e garantias individuais, justamente porque o poder constituinte originário teve a intenção de impedir que o tema fosse objeto de restrição, limitação ou mesmo alteração.

Tal circunstância impede a aprovação de norma que venha a suprimir ou limitar o conjunto de direito e garantias individuais que compõe o devido processo legal, em virtude das chamadas vedações materiais.

Neste sentido, a lição ministrada por Alexandre de Moraes:[3]

“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais. Tais matérias formam o núcleo intangível da Constituição Federal, denominado tradicionalmente por ‘cláusulas pétreas’.” (grifei)

Corroborando tal entendimento, o Professor José Afonso da Silva[4] ensina:

“É claro que o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem: fica abolida a Federação ou a forma federativa de Estado’, ‘fica abolido o voto direto...’, ‘passa a vigorar a concentração de Poderes’, ou ainda ‘fica extinta a liberdade religiosa, ou de comunicação..., ou o habeas corpus, o mandado de segurança...’. A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou do voto direto, ou indiretamente restringir a liberdade religiosa, ou de comunicação ou outro direito e garantia individual; basta que a proposta de emenda se encaminhe ainda que remotamente, ‘tenda’ (emendas tendentes, diz o texto) para a sua abolição.”

Isto significa que, em tese, somente novo poder constituinte originário teria a legitimidade para suprimir a investigação criminal, por intermédio do inquérito policial, do sistema normativo brasileiro.

5. NATUREZA JURÍDICA

A doutrina tradicional atribui ao inquérito policial a natureza jurídica de procedimento persecutório, pois, segundo os adeptos dessa corrente, o conjunto de diligências investigatórias busca a satisfação do jus puniendi.

De acordo com tal entendimento, a persecução criminal é a atividade estatal que inicia com a instauração do inquérito policial, conhecido, também, como informatio delicti, e tem como principal finalidade a punição do autor do delito.

Contudo, o mencionado entendimento não está em consonância com a corrente doutrinária esposada nesta obra, que defende opinião no sentido de que o inquérito, em vez de perseguir a punição do autor do delito, procura revelar a verdade real dos fatos, como forma de promover a justiça criminal.

Efetivamente, o inquérito policial tem um aspecto mais amplo, não se restringe a satisfação do jus puniendi. O delegado de polícia, na busca da verdade real verifica, também, a tipicidade do fato, a existência de causas excludentes de antijuridicidade e culpabilidade do autor do delito.

Na realidade, o órgão responsável pela persecução criminal é o Ministério Público, que encarregado da acusação, procura a condenação do suposto autor do crime.

Portanto, a natureza jurídica do inquérito policial é de um procedimento necessário, de caráter administrativo e natureza relativamente inquisitiva, realizado pela Polícia Judiciária e presidido por delegado de polícia de carreira.

6. FINALIDADE

Os doutrinadores clássicos, com fundamento na interpretação equivocada dos arts. 4º e 12, do CPP, sem levar em conta a nova ordem jurídico-constitucional, afirmam que a finalidade do inquérito policia é a apuração da existência de infração penal e a respectiva autoria, para fornecer ao representante do Ministério Público elementos mínimos para a propositura da ação penal:

“Art. 4º. A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.

Art. 12. O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra.”

Em consonância com a corrente doutrinária adotada nesta obra, a principal finalidade do inquérito policial é elucidar as circunstâncias e a autoria do delito, em busca da verdade real, para promover a justiça criminal.

A promoção de justiça criminal, no contexto do trabalho realizado pela Polícia Civil, consiste na conciliação dos direitos e garantias individuais da pessoa investigada com o direito à segurança pública da população.

Em expressões menos técnicas, significa que o inquérito policial não é realizado com o único propósito de colher elementos de convicção, para o Ministério Público formular a denúncia e desencadear a ação penal.

De forma didática, a finalidade do inquérito policial divide-se em:

- finalidade principal: elucidação das circunstâncias e autoria do delito para a aplicação da lei penal e a proteção dos direitos fundamentais da pessoa investigada; e

- finalidade secundária: produzir subsídios para a propositura da ação penal pelo representante do Ministério Público ou pelo ofendido, bem como para embasar a defesa do suposto autor do crime.

7. PROCESSO OU PROCEDIMENTO

O inquérito policial é um procedimento, porque enfeixa um conjunto de diligências investigatórias voltadas à elucidação das infrações penais, sem observar um rito formal e determinado.

Em outras palavras, é uma sequência de atos de Polícia Judiciária destinados ao esclarecimento das circunstâncias e da autoria do delito.

É importante salientar que o inquérito policial não pode ser considerado um processo, uma vez que sua essência não se ajusta à acepção jurídica dessa expressão, principalmente, porque o delegado de polícia, durante a formalização dos elementos de convicção, não observa integralmente os princípios do contraditório, da ampla defesa e demais formalidades dos atos processuais.

Isto significa que a inobservância dos princípios do contraditório e da ampla defesa e a ausência de rito formal e determinado, no momento da materialização da investigação, impedem que se atribua ao inquérito policial a condição de instrução criminal.

8. JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA

Vele lembrar que o caput, do art. 4º, do CPP, usava, de forma inadequada, o termo “jurisdição”.

A Lei nº 9.043, de 9 de maio de 1995, substituiu o termo “jurisdição” pela expressão “circunscrição”, entendida como os limites territoriais dentro dos quais a polícia realiza suas funções atribuições.

O termo jurisdição designa a atividade por meio da qual o Estado, em substituição às partes, declara a preexistente vontade da lei ao caso concreto:

“Art. 4º. A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivascircunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. (grifei)

Parágrafo único. A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.”

É oportuno esclarecer, também, que o parágrafo único, do citado artigo, dispõe que: “a competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”.

É importante consignar que a autoridade policial não tem competência, mas sim atribuições.

O termo competência, empregado no parágrafo único, do art. 4º, do CPP, deve ser entendido como poder conferido a alguém para conhecer determinados assuntos, não se confundindo com competência jurisdicional, que é a medida concreta do poder jurisdicional.

De outra parte, a atribuição para presidir o inquérito policial é conferida aos delegados de polícia pelos §§ 1º e 4º, do art. 144, da CF, e fixada conforme as normas de organização policial dos Estados.

A atribuição é fixada aos delegados de polícia obedecendo aos seguintes critérios:

- Critério de divisão territorial: unidades de base territorial pelo lugar da consumação da infração (ratione loci). Exemplo: Distrito Policial da área;

- Critério de divisão em razão da matéria: unidades especializadas pela natureza do delito (ratione materiae).DHPP, DEIC, DENARC; e

- Critério de divisão em razão da pessoa: unidades especializadas pela condição da vítima (ratione personae). DDM.

Havendo indícios de que a infração penal foi praticada por policial ou tendo a sua participação, a autoridade policial que tomar conhecimento do fato deverá comunicar imediatamente a ocorrência à respectiva corregedoria-geral de polícia, para as providências cabíveis na esfera penal e disciplinar.

A autoridade policial, em regra, não poderá praticar qualquer ato fora dos limites de sua circunscrição, sendo necessário:

- se o delito ocorrer em outro país: carta rogatória;

- se o delito ocorrer em outra comarca: carta precatória; e

- se o delito ocorrer no DF ou em circunscrição diferente, mas dentro da mesma comarca, não precisa de nenhuma carta, nos termos do art. 22, do CPP:

“Art. 22. No Distrito Federal e nas comarcas em que houver mais de uma circunscrição policial, a autoridade com exercício em uma delas poderá, nos inquéritos a que esteja procedendo, ordenar diligências em circunscrição de outra, independentemente de precatórias ou requisições, e bem assim providenciará, até que compareça a autoridade competente, sobre qualquer fato que ocorra em sua presença, noutra circunscrição.”

9. VALOR PROBATÓRIO NA BUSCA DA VERDADE REAL

Os elementos de convicção produzidos no inquérito policial têm valor probatório relativo, pois não são colhidos sob a integral proteção dos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Quando se afirma que os elementos de convicção produzidos no inquérito policial têm valor probatório relativo pretende-se dizer que a validade desse material depende da compatibilidade com as provas colhidas na fase judicial.

Em razão do sistema do livre convencimento motivado, adotado no ordenamento normativo vigente, as informações produzidas na fase inquisitiva deverão ser confrontadas com as provas colhidas na etapa do contraditório, verificando se existe entre elas consonância.

Neste sentido, recentemente, a Lei nº 11.690, de 09 de junho de 2008, alterou a redação do art. 155, do Código de Processo Penal, estabelecendo que o juiz não poderá fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação criminal, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas:

“Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.” (grifei)

É relevante registrar que a utilização do advérbio “exclusivamente” no caput do art. 155, do CPP, é uma demonstração inequívoca que o juiz poderá se valer, também, dos elementos de informações produzidos no inquérito policial para fundamentar sua decisão.

Em expressões menos técnicas, significa que a alteração legislativa em tela valorizou o inquérito policial, possibilitando que o material colhido durante a fase inquisitiva seja levado em consideração pelo magistrado na formação de sua convicção.

Por outro lado, o novo texto do caput do art. 155, do CPP, atribui valor às provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, coligidas no inquérito, concedendo às partes o direito ao contraditório, na fase judicial.

As provas cautelares são aquelas que precisam ser produzidas porque podem perecer, ser alteradas ou destruídas em razão do tempo. Exemplo: busca e apreensão, interceptação telefônica.

Entende-se por prova não repetível aquela que não pode mais ser reproduzida em juízo, em virtude do desaparecimento da fonte probatória. Exemplos: desaparecimento de vestígios do crime, falecimento de testemunha, etc.

Pelos motivos expostos, esses elementos de convicção sofrem antecipação do momento de sua realização.

10. PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS

As principais características do inquérito policial são:

10.1. Procedimento escrito – consoante se infere do art. 9.º do CPP:

“Art. 9º. Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadase, neste caso, rubricadas pela autoridade.” (grifei)

Entretanto, com a evolução dos meios de comunicação e a instalação do denominado processo virtual, atualmente, a Polícia Federal e a Polícia Civil de alguns Estados realizam o chamado “inquérito policial eletrônico”.

O inquérito policial eletrônico consiste na digitalização de todas as informações e dados da investigação criminal pela Polícia Judiciária e o envio online deste material ao Poder Judiciário, para avaliação do magistrado e representante do Ministério Público.

A adoção desse novo método de trabalho proporciona uma atividade de Polícia Judiciária mais célere, eficiente, segura e econômica, substituindo o tradicional inquérito materializado em meio físico por apuração digitalizada.

O inquérito policial virtual cria condições para o juiz acompanhar online a produção das informações e verificar a legalidade da investigação criminal.

Acrescente-se, ainda, que o art. 30, do Projeto de Lei nº 156/2009 (reforma do Código de Processo Penal), que tramita no Senado Federal, modernizando o inquérito policial, flexibiliza as formas de materialização desse procedimento:

“Art. 30. No inquérito, as diligências serão realizadas de forma objetiva e no menor prazo possível, sendo que as informações e depoimentos poderão ser tomados em qualquer local, cabendo à autoridade policial resumi-los nos autos com fidedignidade, se colhidos de modo informal.

§ 1º. O registro do interrogatório do investigado, das declarações da vítima e dos depoimentos das testemunhas poderá ser feito por escrito ou mediante gravação de áudio ou filmagem, com o fim de obter maior fidelidade das informações prestadas. (grifei)

§ 2º. Se o registro se der por gravação de áudio ou filmagem, o investigado ou o Ministério Público poderão solicitar a sua transcrição.”

10.2. Procedimento sigiloso – conforme se observa do art. 20, do CPP:

“Art. 20. A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. (grifei)

O art. 20, do CPP, aponta os motivos do caráter sigiloso do inquérito policial:

- Necessário para preservar os direitos da pessoa investigada;

- Imprescindível para a elucidação do fato criminoso; e

- Preciso para atender aos interesses da sociedade.

Efetivamente, o sigilo assegurado no inquérito visa garantir o direito à intimidade, vida privada, honra e a imagem, consagrado no inciso X, do art. 5º, da CF.

Da mesma forma, o sigilo está em consonância com o princípio da presunção da inocência, previsto no inciso LVII, do art. 5º, da CF.

O sigilo, também, é imprescindível para a realização das diligências destinadas à elucidação das circunstâncias e da autoria do crime.

Finalmente, serve para atender aos interesses da sociedade, diante da repercussão que o delito causa ao meio social.

A doutrina tem debatido sobre a extensão desta medida restritiva. Principalmente, se o sigilo do inquérito policial alcança o advogado da pessoa investigada?

O Supremo Tribunal Federal decidiu que o sigilo do inquérito policial não atinge aos advogados, tendo em vista o direito e a garantia individual à ampla defesa do investigado.

O STF entende que o defensor sempre poderá ter acesso a todas as informações que estiverem inseridas nos autos, inclusive às provas sigilosas.

Neste sentido, o STF editou a súmula vinculante nº 14, que dispõe sobre o acesso do advogado às informações contidas no inquérito policial.

Súmula vinculante nº 14

“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”

Vale lembrar que os incisos XIII a XV, e o § 1º, do art. 7º, da Lei 8.906/1994, Estatuto da OAB, garantem este direito ao advogado da pessoa investigada.

Trata-se de uma prerrogativa profissional do advogado.

Entretanto, a doutrina, com base no interesse público e na natureza semi-inquisitiva do inquérito policial, entende que o advogado, não pode acompanhar a realização da investigação criminal, que não exija a presença do defensor.

10.3. Procedimento relativamente inquisitivo

A doutrina tradicional sempre ensinou que o inquérito policial é um procedimento totalmente inquisitivo, diante da inexistência de acusação formal e contraditório nesta etapa.

Entretanto, em sintonia com a corrente doutrinária adotada neste trabalho, que considera o inquérito policial como instrumento de promoção de justiça criminal, defende-se posição no sentido de que o inquérito é um procedimento relativamente inquisitivo, diante da necessidade de proporcionar ao investigado o chamado “contraditório mitigado”

De fato, o inciso LIV, do art. 5º, da Magna Carta, determina que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

Indiscutivelmente, quando a pessoa passa da condição de suspeita para investigada ou indiciada (na fase inquisitiva) ou de acusada (na etapa do contraditório) sofre um prejuízo imensurável no seu patrimônio moral.

Sem dúvida, o patrimônio moral compõe o acervo de bens da pessoa.

Logo, antes de sofrer tal prejuízo com a alteração do status de suspeita para investigada ou indiciada, a pessoa tem o direito constitucional de postular a realização de diligências no sentido de refutar as acusações que incidem contra ela, por intermédio do “contraditório mitigado” no inquérito policial.

Isto significa que é preciso dotar o inquérito policial do “contraditório mitigado”, sem retirar a natureza inquisitiva deste instituto, proporcionando à defesa, em igualdade de condições com a acusação, a oportunidade de participar da fase que antecede o indiciamento da pessoa suspeita da prática do crime, procurando demonstrar a inocência do investigado.

Da mesma forma, é possível o exercício do “contraditório mitigado” no inquérito policial por ocasião da produção de provas cautelares, que não serão refeitas no processo crime.

Confirmando a tendência de proporcionar ao investigado a oportunidade de participar da produção dos elementos de convicção no inquérito policial, o art. 27, do Projeto de Lei nº 156/2009 (reforma do Código de Processo Penal), que tramita no Senado Federal, adequando o instituto à nova ordem jurídica constitucional, estabelece:

“Art. 27. A vítima, ou seu representante legal, e o investigado poderão requerer à autoridade policial a realização de qualquer diligência, que será efetuada, quando reconhecida a sua necessidade. (grifei)

§ 1º. Se indeferido o requerimento de que trata o caput deste artigo, o interessado poderá representar à autoridade policial superior ou ao Ministério Público.”

Corroborando a tese aqui adotada, saliente-se que a ausência de acusação formal no inquérito policial não impede que os direitos do investigado sejam respeitados, entre eles, se destacam: o direito ao silêncio, o de não se auto-incriminar, o de ser tratado com dignidade e respeito, o de refutar as acusações que lhe são imputadas, por intermédio do “contraditório mitigado”, etc.

Em decorrência da natureza relativamente inquisitiva do inquérito policial não pode ser arguida suspeição da autoridade policial, consoante se infere do art. 107, do CPP.

“Art. 107. Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal.”

Ainda sobre a natureza relativamente inquisitiva do inquérito, o art. 14, do CPP, estabelece que a autoridade policial pode indeferir qualquer pedido de diligência.

“Art. 14. O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.”

Contudo, o art. 184, do CPP, determina que a diligência de exame de corpo de delito não pode ser indeferida pela autoridade policial.

“Art. 184. Salvo o caso de exame de corpo de delito, o juiz ou a autoridade policial negará a perícia requerida pelas partes, quando não for necessária ao esclarecimento da verdade.”

Finalmente, em virtude da natureza relativamente inquisitiva do inquérito policial, a presença de advogado não é obrigatória durante a materialização dos elementos de convicção da investigação criminal, mas reveste de credibilidade os atos de Polícia Judiciária.

10.4. Oficiosidade – de acordo com o inciso I, do art. 5º, do CPP:

“Art. 5º. Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:

I – de ofício; (...)”.(grifei)

Tal característica encontra seu fundamento de validade no princípio da obrigatoriedade ou legalidade.

O princípio da obrigatoriedade ou legalidade dispõe que, na hipótese de crime de ação penal pública incondicionada, o delegado de polícia é obrigado (tem o dever de) a instaurar o inquérito policial ex officio, independente de qualquer tipo de provocação.

10.5. Oficialidade e Autoritariedade – conforme se verifica dos §§ 1º e 4º, do art. 144, da CF:

“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

§ 1º. A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II – prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

III – exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;

IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. (...)

§ 4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.”

O caráter de oficialidade e autoritariedade do inquérito policial significa que este procedimento é realizado por órgão público oficial, a Polícia Judiciária, e presidido por uma autoridade pública, o delegado de polícia de carreira, de natureza jurídica.

Por analogia aos direitos individuais, consagrados nos incisos XXXVII e LIII, do art. 5º, da CF, que proíbem o chamado “juizados de exceção”, a pessoa, antes de cometer o crime, tem o direito de saber:

- Qual o procedimento utilizado para formalizar a investigação criminal (inquérito policial);

- Qual o órgão responsável para realizar este procedimento (Polícia Judiciária); e

- Qual o servidor responsável pela apuração e formalização das circunstâncias e autoria do delito (delegado de polícia).

De outra parte, apesar de a investigação particular não ser proibida no Brasil, para que tal material tenha validade deverá ser apresentado à Polícia Judiciária, visando à confirmação dos dados e informações obtidos de forma lícita.

10.6. Indisponibilidade – consoante se infere do art. 17, do art. CPP:

“Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito.”

Isto significa que, uma vez instaurado o inquérito policial, o delegado de polícia não pode determinar o seu arquivamento.”

O art. 28, do CPP, confere ao juiz a atribuição para arquivar o inquérito policial.

“Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.”

11. PROVIDÊNCIAS PRELIMINARES

O art. 6º, do CPP, estabelece um verdadeiro roteiro dos atos que devem anteceder a instauração do inquérito policial.

“Art. 6º. Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:

I – dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais;

II – apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais;

III – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;

IV – ouvir o ofendido;

V – ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por 2 (duas) testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura;

VI – proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;

VII – determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias;

VIII – ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes;

IX – averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter.”

12. INÍCIO DO INQUÉRITO POLICIAL

Este tópico é dedicado ao estudo das formas pelas quais o inquérito policial se inicia.

Para integral compreensão das formas pelas quais o inquérito policial se inicia, antes, é necessário realizar breve introdução a respeito da notitia criminis e da ação penal, temas relacionados à questão principal.

12.1. Notícia Criminis

A notitia criminis é a forma pela qual a autoridade policial toma conhecimento de um fato delituoso.

A ciência da notícia de um crime, dependendo das circunstâncias, pode ocorrer de maneira espontânea ou provocada.

Didaticamente a notitia criminis é dividida em três espécies:

- Notitia Criminis de cognição direta, imediata, espontânea;

- Notitia Criminis de cognição indireta, mediata; e

- Notitia Criminis de cognição coercitiva.

Notitia Criminis de cognição direta, imediata, espontânea:

Ocorre quando o delegado de polícia toma conhecimento direto do ilícito penal por meio do exercício de suas atribuições.

Dentre outras hipóteses, se destacam o conhecimento por intermédio do policiamento repressivo realizado pela Polícia Judiciária, com a localização do corpo de delito; de matéria publicada pelos órgãos de comunicação; e da denominada denúncia anônima.

Por oportuno, saliente-se que a denúncia anônima ou apócrifa é chamada também como notitia criminisinqualificada.

Notitia Criminis de cognição indireta, mediata:

Acontece quando o delegado de polícia fica sabendo do crime por intermédio de comunicação oficial ou formal.

Por sua vez a notitia criminis de cognição indireta e mediata se subdivide em:

- Notitia criminis de cognição provocada ou qualificada, quando a autoridade policial toma conhecimento do fato por requisição do juiz ou do representante do Ministério Público; e

- Delatio criminis, quando a comunicação é feita por intermédio do requerimento formulado pela vítima ou por qualquer um do povo, contendo a narração do fato com todas as circunstâncias, a individualização do suspeito e a indicação das provas.

Saliente-se que quando a delatio criminis for subscrita pelo requerente recebe o nome jurídico de notitia criminis qualificada.

A delatio criminis pode ser:

- Simples: quando apenas comunica o fato; e

- Postulatória: quando, além de comunicar o fato, postula a adoção de medidas.

Notitia Criminis de cognição coercitiva:

Ocorre com a prisão em flagrante, hipótese em que o delegado de polícia toma conhecimento do crime no momento da prisão ou apresentação do autor do crime.

12.1. Ação Penal

A ação penal é o instrumento pelo qual o Estado verifica a veracidade da imputação formulada pelo representante do Ministério Público, que recai sobre o acusado da prática de ato tipificado como crime, com a consequente imposição de pena.

O art. 100, do Código Penal, classifica a ação penal em:

- Ação penal pública; ou

- Ação penal de iniciativa privada.

A ação penal pública tem como titular exclusivo o representante do Ministério Público, isto é, somente o membro do Parquet tem legitimidade ativa para propor tal ação.

Por sua vez a ação penal pública subdivide-se em:

- Ação penal pública incondicionada; e

- Ação penal pública condicionada.

A ação penal é pública incondicionada quando o membro do Ministério Público não depende de qualquer condição de procedibilidade para agir.

A ação penal é pública condicionada quando o representante do Ministério Público depende de certas condições de procedibilidade para ingressar em juízo.

As condições exigidas por lei podem ser a:

- Representação do ofendido; ou

- Requisição do Ministro da Justiça.

A representação do ofendido é a manifestação da vítima ou de seu representante legal, autorizando o delegado de polícia a investigar o crime e o membro do Ministério Público a ingressar com a ação penal respectiva.

A requisição do Ministro da Justiça é o ato político e discricionário pelo qual o Ministro da Justiça autoriza o representante do Ministério Público a propor a ação penal pública nas hipóteses legais.

12.2. Inícios do Inquérito nos crimes de Ação Pública Incondicionada

Consoante se infere dos incisos I e II e dos §§ 1º e 2º, do art. 5º, do CPP, o inquérito policial nos crimes de ação pública incondicionada se iniciam das seguintes formas:

- de ofício (iniciativa da própria autoridade policial) por auto de prisão em flagrante, portaria e despacho do delegado de polícia;

- por requisição do juiz ou representante do Ministério Público; e

- pela delatio criminis (requerimento da vítima ou de qualquer outra pessoa).

“Art. 5º. Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:

I – de ofício;

II – mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.

§ 1º. O requerimento a que se refere o nº II conterá sempre que possível:

a) a narração do fato, com todas as circunstâncias;

b) a individualização do indiciado ou seus sinais característicos e as razões de convicção ou de presunção de ser ele o autor da infração, ou os motivos de impossibilidade de o fazer;

c) a nomeação das testemunhas, com indicação de sua profissão e residência.

§ 2º. Do despacho que indeferir o requerimento de abertura de inquérito caberá recurso para o chefe de Polícia.”

12.2.1. Início de ofício, mediante auto de prisão em flagrante, portaria ou por despacho do delegado de polícia

Tendo em vista o princípio da obrigatoriedade e da oficialidade, previsto no inciso I, do art. 5º, do CPP, o inquérito policial deve ser instaurado a partir do momento em que a autoridade policial tomou conhecimento do fato criminoso.

A portaria da autoridade policial deverá descrever, na medida do possível, as circunstâncias e os dados conhecidos do crime e de seu autor.

Além disso, a peça inicial do inquérito policial deverá enquadrar a conduta do agente ao tipo penal.

Tais informações são os parâmetros da investigação criminal, que pretende responder as seguintes indagações:

- Qual o crime?

- Quando ocorreu?

- Onde ocorreu?

- Como foi praticado?

- Por quê?

- Quem é a vítima?

- Quem é o autor do Crime?

12.2.2. Início por requisição do Juiz ou do representante do Ministério Público

Conforme determina os arts. 5º e 40, do CPP e inciso VIII, do art. 129, da CF.

“Código de Processo Penal

Art. 5º. (...) II – mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.

Art. 40. Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia.

Constituição Federal

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;”

O inquérito policial, nestes casos, somente se inicia com o despacho da autoridade, declarando a sua instauração.

Isto significa que a requisição do juiz ou do representante do Ministério Público não tem o poder de desencadear o inquérito, que depende da decisão do dirigente da Polícia Judiciária.

É importante esclarecer que a doutrina tradicional, de forma equivocada, sempre ensinou que autoridade policial não pode se recusar a instaurar o inquérito, pois a requisição tem natureza de determinação, de ordem, muito embora inexista subordinação hierárquica.

Com o devido respeito, esse entendimento jurídico está superado, uma vez que o delegado de polícia não pode ser transformado em um ser autômato, que obedece cegamente a ordem do juiz ou promotor de justiça, sem questionar e analisar o teor da determinação.

Com fundamento nesta nova orientação doutrinária, a autoridade policial, em casos excepcionais, poderá deixar de instaurar inquérito policial, requisitado pelo magistrado ou membro do Parquet, dentre outras hipóteses, quando o fato noticiado não constituir crime.

Ressalte-se, entretanto, que o desconhecimento das circunstâncias do crime e da sua autoria não pode ser alegado pela autoridade policial, para deixar de atender a requisição de instauração do inquérito.

De outra parte, o delegado de polícia deverá adotar as providências necessárias para evitar que o representante do Ministério Público, ao requisitar a instauração de inquérito policial, assuma indiretamente a presidência do feito, determinando as diligências e estabelecendo regras como a autoridade policial deve apurar o delito.

12.2.3. Início pela delatio criminis, quando a comunicação de um crime é feita pela vítima ou qualquer um do povo

Na hipótese de a autoridade policial indeferir o pedido de instauração de inquérito formulado pela vítima ou por qualquer outra pessoa, caberá recurso ao Chefe de Polícia, nos termos do § 2º, do art. 5º, do CPP.

“Art. 5º. (...) § 2º. Do despacho que indeferir o requerimento de abertura de inquérito caberá recurso para o chefe de Polícia.”

A doutrina entende que tal recurso poderá ser encaminhado ao superior imediato, Delegado de Polícia que detém a chefia da Polícia Judiciária (no Estado de São Paulo o cargo é denominado Delegado Geral de Polícia e nos outros Estados da Federação o cargo é chamado de Chefe de Polícia) ou ao superior hierárquico mediato, Secretário responsável pela Pasta da Segurança Pública.

A delatio criminis é mera faculdade atribuída a qualquer um do povo no sentido de auxiliar a atividade repressiva exercida pela Polícia Judiciária.

Entretanto, há algumas pessoas que, em razão do seu cargo ou da sua função, estão obrigadas a notificar no desempenho de suas atividades.

Entre estes casos, se destacam:

- Incisos I e II, do art. 66, da Lei das Contravenções Penais.

“Omissão de comunicação de crime

Art. 66. Deixar de comunicar à autoridade competente:

I – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal não dependa de representação;

Il – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal:

Pena – multa.”

- Art. 45, da Lei nº 6.538/1978 (Lei que dispõe sobre os serviços postais)

“Art. 45. A autoridade administrativa, a partir da data em que tiver ciência da prática de crime relacionado com o serviço postal ou com o serviço de telegrama, é obrigada a representar, no prazo de 10 (dez) dias, ao Ministério Público Federal contra o autor ou autores do ilícito penal, sob pena de responsabilidade.”

12.3. Início do Inquérito nos crimes de ação pública condicionada

O inquérito policial nos crimes de ação pública condicionada se inicia:

- por representação do ofendido ou de seu representante legal.

A representação é simples manifestação de vontade da vítima ou de seu representante legal.

A doutrina não exige que tal documento se revista de maiores formalidades, basta que o ofendido autorize expressamente a Polícia Judiciária instaurar inquérito policial, para apuração do delito.

- por requisição do Ministro da Justiça.

Tal documento deve ser encaminhado ao chefe do Ministério Público, que requisitará diligências à Polícia Judiciária, no sentido de elucidar as circunstâncias e a autoria do delito.

O inquérito policial nos crimes de ação pública condicionada à representação também pode começar mediante auto de prisão em flagrante. Neste caso, a vítima deverá ratificar o flagrante até a entrega da nota de culpa, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas.

12.4. Início do Inquérito nos crimes de ação privada

O inquérito policial nos crimes de ação privada se inicia com a apresentação do requerimento do ofendido, de seu representante legal ou sucessores, conforme estabelecem o § 5º, do art. 5º e os arts. 30 e 31, do CPP.

“Art. 5º. (...) § 5º. Nos crimes de ação privada, a autoridade policial somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la.

Art. 30. Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo caberá intentar a ação privada.

Art. 31. No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou prosseguir na ação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.”

Vale lembrar que o art. 35, do CPP, que estabelecia que a mulher casada não podia exercer o direito de queixa sem consentimento da marido, salvo quando estivesse dele separada ou quando a queixa fosse contra ele, foi revogado pela Lei nº 9.520/1997, uma vez que o mencionado dispositivo contrariava o § 5º, do art. 226, da Constituição Federal.

O § 5º, do art. 226, da Carta Magna, dispõe que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

De outra parte, o inquérito policial nos crimes de ação privada, após o relatório final, será encaminhado ao juízo competente ou será entregue ao requerente, nos termos do art. 19, do CPP.

“Art. 19. Nos crimes em que não couber ação pública, os autos do inquérito serão remetidos ao juízo competente, onde aguardarão a iniciativa do ofendido ou de seu representante legal, ou serão entregues ao requerente, se o pedir, mediante traslado.”

O inquérito policial nos crimes de ação privada também pode começar por intermédio de prisão em flagrante, nesta hipótese o ofendido deverá ratificar o flagrante até a entrega da nota de culpa, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas.

Em suma, as peças inaugurais sobre as quais a autoridade policial determina a instauração de inquérito policial são:

- Portaria;

- Requisição Judicial ou Ministerial;

- Representação da vítima de crime de ação pública condicionada;

- Requerimento da vítima de crime de ação privada;

- Auto de Prisão em Flagrante;

- Auto de Resistência; e

- Auto de Apresentação espontânea.

13. RITO

O inquérito policial não possui rito preestabelecido, tendo em vista a sua natureza relativamente inquisitiva.

Efetivamente, como foi afirmado, o inquérito é um procedimento, porque enfeixa um conjunto de diligências investigatórias voltadas à elucidação das infrações penais, sem observar um rito formal e determinado.

Em outras palavras, significa que não há necessidade de seguir uma ordem rígida na realização das diligências.

Para que se tenha um parâmetro na elaboração do inquérito policial, divide-se didaticamente o procedimento em três etapas:

- Início – instauração;

Na portaria o delegado deve determinar todas as diligências que vislumbrar necessárias, requisitando as perícias imprescindíveis à comprovação das circunstâncias e autoria do delito.

- Instrução – materialização das investigações criminais;

Tendo em vista a natureza do inquérito policial, de instrumento de promoção de justiça criminal, o interrogatório, na medida do possível, deverá ser realizado ao final desse procedimento, com o objetivo de proporcionar ao investigado a oportunidade de refutar as suspeitas que recaem sobre sua pessoa, exercendo, desta forma, o chamado “contraditório mitigado”.

- Conclusão – análise das provas, tipificação da conduta e representação pela decretação da prisão cautelar.

14. INCOMUNICABILIDADE

O art. 21, do CPP, prevê a possibilidade da decretação da incomunicabilidade do indiciado, durante a realização do inquérito policial.

“Art. 21. A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir.

Parágrafo único. A incomunicabilidade, que não excederá de 3 (três) dias, será decretada por despacho fundamentado do juiz, a requerimento da autoridade policial, ou do órgão do Ministério Público, respeitado, em qualquer hipótese, o disposto no art. 89, III, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 4.215, de 27 de abril de 1963).”

O mencionado dispositivo elenca duas condições para a efetivação dessa medida: quando o interesse da sociedade ou conveniência da investigação o exigir.

A finalidade dessa providência é impedir que a comunicação do preso com terceiros venha a prejudicar o desenvolvimento da investigação.

É relevante destacar que somente o juiz pode decretar a incomunicabilidade do indiciado, mediante despacho fundamentado, demonstrando o preenchimento das condições estabelecidas pela lei.

A norma, também, estabelece o prazo improrrogável de 3 (três) dias de duração desta medida coercitiva.

O juiz depende para decretar a incomunicabilidade, da representação da autoridade policial ou do requerimento do representante do Ministério Público.

Saliente-se que tal medida não alcança o advogado, nos termos do parágrafo único, do art. 21, do CPP, que menciona expressamente o inciso III, do art. 89 (atual art. 7º, III), do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

Vale lembrar que parte da doutrina entende que a incomunicabilidade do indiciado não foi recepcionada pela nova ordem constitucional.

Os doutrinadores que defende essa corrente aduzem que o art. 21, do CPP, foi revogado pelo inciso IV, do art. 136, da CF, que proíbe a incomunicabilidade durante o estado de defesa.

Os estudiosos neste assunto argumentam que se a Constituição Federal proíbe o mais, também proíbe o menos.

Em sentido contrário, outra corrente doutrinária entende que a proibição está relacionada com crimes políticos ocorridos durante o estado de defesa.

Atualmente, predomina o entendimento de que o art. 21, do CPP, é inconstitucional.

15. PRAZOS PARA ENCERRAMENTO

O art. 10, do CPP, estabelece os prazos de encerramento do inquérito policial.

“Art. 10. O inquérito deverá terminar no prazo de 10 (dez) dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 (trina) dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela”.

O procedimento investigatório deve ser encerrado no prazo de 30 (trinta) dias a partir da data da instauração, se o indiciado estiver solto.

Na hipótese de não ser possível concluir o procedimento no prazo de 30 (trinta) dias, notadamente, nos casos mais complexos ou em que há necessidade de realização de provas periciais, o delegado de polícia deverá solicitar a dilação de prazo, fundamentando o pedido com as razões que o impediram de encerrar o feito no tempo legal.

De acordo com o art. 16, do CPP, o inquérito poderá ser devolvido à Polícia Judiciária quando o Ministério Público entender que falta uma diligência imprescindível para a denúncia.

“Art. 16. O Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia.”

Vale lembrar que, se o juiz discordar dessa devolução, cabe Correição Parcial contra referida decisão.

De outro lado, o procedimento investigatório deve ser encerrado no prazo de 10 (dez) dias, se o indiciado estiver preso.

Neste caso, o prazo de 10 dias será contado da data da efetivação da prisão.

É importante registrar que, na hipótese de o indiciado estar preso, não será possível a dilação do prazo de encerramento do inquérito.

Nesta hipótese, não pode haver dilação de prazo, pois se presume que, se a pessoa está presa, os elementos de convicção foram suficientemente produzidos.

A conclusão do inquérito fora do prazo estabelecido acarreta o relaxamento da prisão do indiciado e responsabilidade no âmbito criminal e administrativo ao policial civil desidioso.

O delegado de polícia deverá dedicar especial atenção no que se refere à contagem do prazo de conclusão do inquérito, nos casos em que o indiciado estiver preso.

Apesar de se tratar de prazo de Direito Processual (conta-se a partir do primeiro dia útil seguinte), como se relaciona à restrição da liberdade, o prazo de 10 (dez) dias deve ser contado de acordo com o Direito Penal (conta-se o dia do começo e exclui se o do final).

É importante consignar que a legislação especial estabelece outros prazos para a conclusão do inquérito policial:

- Se o inquérito estiver tramitando perante a Justiça Federal, o prazo será de 15 (quinze) dias, prorrogável por mais 15 (quinze) se o indiciado estiver preso, conforme estabelece o art. 66, da Lei nº 5.010/1966 – Lei Orgânica da Justiça Federal.

“Art. 66. O prazo para conclusão do inquérito policial será de quinze dias, quando o indiciado estiver preso, podendo ser prorrogado por mais quinze dias, a pedido, devidamente fundamentado, da autoridade policial e deferido pelo Juiz a que competir o conhecimento do processo”. (grifei)

Parágrafo único. Ao requerer a prorrogação do prazo para conclusão do inquérito, a autoridade policial deverá apresentar o preso ao Juiz.

- Nos crimes contra a economia popular, o prazo é de 10 (dez) dias, estando o indiciado preso ou não, nos termos do § 1º, do art. 10, da Lei nº 1.521/1951.

“Art. 10. Terá forma sumária, nos termos do capítulo V, título II, livro II, do Código de Processo Penal, o processo das contravenções e dos crimes contra a economia popular, não submetidos ao julgamento pelo Júri.

§ 1º. Os atos policiais (inquérito ou processo iniciado por portaria) deverão terminar no prazo de dez dias”. (grifei)

- Nos crimes previstos na nova Lei de Tóxicos, o prazo para conclusão do inquérito será de 30 (trinta) dias, se o indiciado estiver preso, e de 90 (noventa) dias, se estiver solto, podendo o referido lapso temporal ser duplicado, de acordo com o art. 51, da Lei nº 11.343/2006.

“Art. 51. O inquérito policial será concluído no prazo de 30 (trinta) dias, se o indiciado estiver preso, e de 90 (noventa) dias, quando solto.

Parágrafo único. Os prazos a que se refere este artigo podem ser duplicados pelo juiz, ouvido o Ministério Público, mediante pedido justificado da autoridade de polícia judiciária.”

16. CONCLUSÃO

O relatório final é a conclusão do inquérito.

Nesse relatório deve haver uma classificação jurídica do crime, bem como a análise dos elementos de convicção produzidos no inquérito policial.

Isto não que dizer que, necessariamente, se deva concluir pela apuração da autoria e materialidade de um crime.

Melhor explicando, diante do apurado, com fundamento no princípio da verdade real, o delegado de polícia, entre outras hipóteses, poderá concluir pela:

- Inexistência do fato;

- Inocência do investigado; e

- Existência de uma causa excludente de antijuridicidade e culpabilidade.

O relatório poderá ser:

- Terminativo: quando conclusivo;

- Requisitório: quando, além de conclusivo, a autoridade policial representa pela decretação da prisão preventiva ou provisória; e

- Complementar: atende diligências requisitadas pelo representante do Ministério Público.

É importante salientar que o relatório final não deve ser apenas um resumo do apurado ou uma espécie de índice remissivo do que se encontra juntado aos autos.

O relatório deve demonstrar o domínio que o delegado de polícia tem na ciência da investigação criminal e na área do direito, circunstância que justifica a inserção da atividade exercida pelas autoridades policiais no rol das carreiras jurídicas.

17. ARQUIVAMENTO

Tendo em vista o princípio consagrado no inciso XXXV, do art. 5º, da CF, que estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, o inquérito policial concluído será encaminhado obrigatoriamente ao Poder Judiciário.

Como ficou consignado anteriormente, o principal objetivo do inquérito é a busca da verdade real e não o oferecimento da denúncia pelo representante do Parquet.

Portanto, não tem fundamento o encaminhamento e arquivamento do inquérito policial pelo Ministério Público.

Desta forma, o arquivamento do inquérito só pode ser determinado pelo juiz mediante pedido fundamentado do representante do Ministério Público.

Na hipótese de o juiz discordar do pedido de arquivamento, remeterá os autos ao Procurador-Geral de Justiça, conforme determina o art. 28, do CPP.

Neste caso, o Procurador-Geral de Justiça poderá:

- Designar outro Promotor de Justiça para oferecer a denúncia (princípio da independência funcional).

O Promotor de Justiça designado não pode recusar-se, pois quem está denunciando é o Procurador-Geral; e aquele estará apenas executando (trata-se de delegação);

- Devolver os autos para diligências complementares; e

- Insistir no arquivamento.

Nesse caso, o Poder Judiciário não poderá discordar do arquivamento.

“Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender”.

Em caso de competência originária, o pedido de arquivamento formulado pelo Procurador-Geral vincula o juiz, ou seja, não cabe nenhum tipo de recurso dessa decisão.

Saliente-se que uma vez arquivado o inquérito policial, não poderá ser promovida a ação privada subsidiária da pública.

Em regra, não existe recurso contra decisão que determinou o arquivamento do inquérito policial.

Entretanto, o ordenamento jurídico vigente contempla hipótese em que há recurso contra decisão de arquivamento:

Nos crimes contra a economia popular, caberá recurso de ofício, de acordo com o art. 7º, da Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951.

“Art. 7º Os juízes recorrerão de ofício sempre que absolverem os acusados em processo por crime contra a economia popular ou contra a saúde pública, ou quando determinarem o arquivamento dos autos do respectivo inquérito policial”. (grifei)

Se o tribunal der provimento a esse recurso, o inquérito policial será remetido ao Procurador-Geral de Justiça.

É oportuno sublinhar que o inquérito policial arquivado só poderá ser reaberto com novas provas, conforme determina o art. 18, do CPP.

“Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.”

No mesmo sentido a Súmula nº 524 do STF.

“Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas.”

Finalmente, registre-se que não existe arquivamento em ação privada, pois o pedido de arquivamento feito pela vítima significa renúncia do direito de queixa, situação relacionada como causa de extinção da punibilidade, no inciso V, do art. 107, do Código Penal.

“Art. 107. Extingue-se a punibilidade: (...)

V – pela renúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada.”

18. INQUÉRITOS EXTRAPOLICIAIS

Em regra, os inquéritos policiais são realizados pela Polícia Judiciária e presididos por delegado de polícia de carreira, por força do que dispõe o § 4º, do art. 144, da CF.

Entretanto, o parágrafo único, do art. 4º, do CPP, estabelece a possibilidade de o inquérito policial ser realizado por outras autoridades administrativas, desde que esta atribuição esteja expressamente prevista em lei.

“Art. 4º. (...) Parágrafo único. A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”.

Portanto, existem raríssimos casos em que o procedimento investigatório criminal não é realizado pela Polícia Judiciária:

- Comissões Parlamentares de Inquérito, consoante estabelece o § 3º, do art. 58, da CF.

“Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. (...)

§ 3º. As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”. (grifei)

- Crime cometido nas dependências da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, nos termos da Súmula nº 397, do STF.

“O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas dependências, compreende, consoante o regimento, a prisão em flagrante do acusado e a realização do inquérito” (grifei)

- Inquérito policial militar, consoante se infere do § 4º, do art. 144, da CF.

“Art. 144. (...) § 4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.” (grifei)

- Crime cometido por juiz.

Se o crime cometido pelo juiz for inafiançável ele pode ser preso. A autoridade policial lavra o Auto de Prisão em Flagrante e imediatamente o encaminha ao Tribunal de Justiça, inclusive o preso.

O inquérito policial instaurado contra juiz é presidido por um desembargador sorteado no Tribunal de Justiça.

- Crime cometido por representante do Ministério Público.

Se o crime cometido pelo membro do Ministério Público for inafiançável ele pode ser preso. A autoridade policial lavra o Auto de Prisão em Flagrante e imediatamente o encaminha ao Procurador-Geral de Justiça, inclusive o preso.

O inquérito policial instaurado contra representante do Ministério Público é presidido pelo Procurador-Geral de Justiça ou um promotor de justiça por ele designado.

Finalmente, registre-se que a atribuição de presidir inquérito destinado à apuração de crime falimentar, que era dos magistrados, passou para os delegados de polícia, por força do que dispõe o art. 187, da Lei nº 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

“Art. 187. Intimado da sentença que decreta a falência ou concede a recuperação judicial, o Ministério Público, verificando a ocorrência de qualquer crime previsto nesta Lei, promoverá imediatamente a competente ação penal ou, se entender necessário, requisitará a abertura de inquérito policial.” (grifei)


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Notas:
[1]. GRINOVER, Ada Pellegrini. As Condições da Ação Penal. São Paulo: Bushatsky, 1977. — O Processo em sua Unidade. São Paulo: Saraiva, 1978.
[2]. D'URSO, Luíz Flávio Borges. “O inquérito policial: eliminá-lo ou prestigiá-lo?”, Jus Navigandi, Teresina, ano 4, nº 39, fev. 2000. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=1047>. Acesso em: 26.7.2008.
[3]. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1977. p. 414.
[4]. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 8ª ed., 1992. p. 61.



Informações Sobre o Autor

Mário Leite de Barros Filho, Delegado de polícia do Estado de São Paulo, professor universitário, autor de duas obras na área do Direito Administrativo Disciplinar. Atualmente, exerce a atividade de assessor jurídico do gabinete do deputado federal Regis de Oliveira, em Brasília