Corregedorias das polícias têm infraestrutura precária para investigar mortes. Formação dos servidores é inexistente em vários estados e boa parte dos policiais desses órgãos tem autonomia restrita
ALESSANDRA DUARTE E CAROLINA BENEVIDES
O GLOBO
Atualizado:4/11/13 - 9h04
Atualizado:4/11/13 - 9h04
Marcos Cezar Ramos diz que policiais ameaçaram sua irmã, testemunha da ação que resultou na morte do irmão Flávio Ilha
RIO — Ainda que tenha uma das polícias que mais mata no mundo — em 2012, cinco civis foram mortos em confronto diariamente em todo o país —, os controles interno e externo da atividade policial no Brasil ainda são frágeis e não dão conta da demanda de investigações sobre suspeitas que recaem sobre os agentes de segurança. Pesquisa realizada pelo sociólogo Ignacio Cano, da Uerj, com corregedorias de Polícia Militar, Polícia Civil, bombeiros, Polícia Federal e Sistema Penitenciário mostra que esses órgãos contam com infraestrutura precária. A formação dos servidores é inexistente em vários estados e boa parte dos policiais desses órgãos tem autonomia restrita. Além disso, a pesquisa aponta que a população tem uma imagem negativa do trabalho realizado.
Como resultado, muitos crimes cometidos por policiais acabam ficando impunes. Ao todo, 16 corregedorias da PM e 15 da Polícia Civil participaram do estudo.
— No Brasil, corregedoria não é vista como algo essencial. Em geral, têm contingente pequeno, enfrentam dificuldade de recrutamento e o policial não tem estabilidade, o que faz com que possa depois de investigar um agente ter que trabalhar na rua com ele. Além disso, investigam pouco, não recebem denúncias por medo, mas não são proativas — diz Cano.
Sobre a atuação do Ministério Público, responsável pelo controle externo das policiais, o Procurador Regional da República e conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) Mario Bonsaglia reconhece que “há falhas e que o papel do MP de ser aprimorado”.
— O Ministério Público é omisso ao fazer o controle externo. Existem promotores, claro, que levam o trabalho a sério, mas são casos isolados. Algumas ouvidorias, por sua vez, acompanham casos de letalidade mas não dão queixa nas corregedorias. Na verdade, os mecanismos de controle foram esvaziados. O resultado são civis e policias mortos. Ninguém ganha com isso — diz Samira Bueno, secretária executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Secretaria de Segurança Pública do estado do Rio, Roberto Sá concorda que as corregedorias não são proativas, mas diz que é hora de mudar:
— Tem que se tornar proativa. Não precisa esperar que a denúncia seja feita, pode tomar conhecimento do fato, por exemplo, pelos jornais. Sabemos que as pessoas ainda têm preconceito, ainda têm receio de denunciar. Mas é importante ainda que saibam que toda denúncia que chega vai ser levada a cabo — afirma Sá.
Dados sobre letalidade são omitidos
Além das corregedorias, há estados que também contam com ouvidorias. No entanto, segundo Samira Bueno, secretária executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a maioria dessas unidades não trabalha com transparência:
— Elas recebem dados sobre letalidade policial, mas não divulgam. Das 18 que existem no Brasil, 16 não repassam informações. Não se sabe exatamente o que fazem e como trabalham.
De acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, estados como Sergipe, Roraima, Rondônia, Mato Grosso do Sul, Tocantins e o Piauí não tem ouvidoria em funcionamento.
— A ouvidoria de polícia seria o controle externo, mas não há essa figura em todos os estados, e nenhuma das existentes tem poder de investigação — lembra Adriana Loche, consultora do Banco Mundial e pesquisadora da área de segurança pública.
Pai de Márcio Leandro, morto aos 32 anos em um suposto confronto com a polícia, Sylvio buscou ajuda no Ministério Público Estadual no Rio para esclarecer o caso. No entanto, segundo ele, ouviu que não havia muito a ser feito.
— O MP não ajudou. Acabei procurando a OAB e a Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio). Meu filho era mototaxista e foi morto em casa por PMs. A perícia comprovou que os policiais atiraram à queima roupa, mas a morte foi registrada como auto de resistência. Minha neta, na época com três anos, viu tudo e até hoje tem pavor de homem fardado. Quero ver a verdade aparecer. A Polícia Militar acha que pode tudo, não tem limite. Ele não era bandido. Mas, se fosse, não tem pena de morte no Brasil. A polícia nem tinha mandado de busca ou de prisão. Se ele fosse bandido, se tivesse algo errado, eles deviam prender. Eles não são juízes para condenar ninguém.
Promotores sem estrutura para investigar
Para Bonsaglia, a atribuição dada ao Ministério Público pela Constituição é fundamental, mas exercê-la “não é fácil”:
— Há uma prática arraigada no Brasil e de difícil mudança. A sociedade não questiona a letalidade policial. Se não há questionamento, há acomodação. As pessoas, então, acabam invisíveis. A maioria está nas camadas menos privilegiadas. No CNMP, o tema tem merecido atenção, mas não há ainda uma política própria sobre a questão. No entanto, acreditamos que as mortes envolvendo policiais devem ser encaradas como homicídio. Os boletins de ocorrência feitos como auto de resistência são inconsistentes. Daí, é direto para o arquivo.
Outra dificuldade enfrentada pelos promotores, além da má qualidade dos boletins de ocorrência, é a falta de estrutura e de segurança para atuar. Promotora em Manaus, Cley Martins concorda que o controle externo precisa ser fortalecido, mas diz que enfrenta problemas para realizar seu trabalho.
— Lidamos com a falta crônica de estrutura investigatória. Eu precisaria de um quadro de servidores especialistas nas áreas de investigação, perícia técnica, informática e segurança. Além disso, há apenas três anos, os promotores de justiça do controle externo se reúnem em Brasília para trocar experiencias e encaminhar sugestões ao CNMP para delinear um perfil unificado para a atividade.
Em 2011, o pesquisador levantou um dado que classifica como preocupante. Ele diz que os agentes de corregedorias têm baixa produtividade. Calculou o número de punições feitas por cada servidor de corregedoria. E concluiu que cada membro teria punido, em média, 5,6 colegas, por ano. Nas outras instituições, incluindo a Polícia Civil, a média era apenas de duas punições.
Enquanto isso, o promotor junto à Auditoria Militar do Rio, Paulo Roberto Mello Cunha Jr., que trabalhava com a juíza Patricia Acioli, assassinada em 2011, lembra que, entre 2008 e 2010, quando atuava em São Gonçalo, chegou a investigar cerca de 10% do batalhão da área.
— Denunciamos cerca de 120 PMs, e devemos ter levado a júri quatro casos. Há um passivo grande de casos antigos, aconteceu, por exemplo, de um policial ter praticado o homicídio quando era tenente, e, quando o denunciamos, ele já era major. Cheguei a ver PM que tinha 37, 40 autos de resistência. Houve um PM que denunciei 19 vezes. Ele tinha sempre o mesmo modus operandi: todo mundo que supostamente resistia a ele morria com um tiro na perna e outro na cabeça.
Polícia mata cinco pessoas por dia no Brasil. Especialistas e parentes de vítimas contestam alegações de legítima defesa
ALESSANDRA DUARTE E CAROLINA BENEVIDES
O GLOBO
Atualizado:3/11/13 - 10h13
Gilmara tatuou o nome do filho depois que o rapaz morreu na porta de casa O Globo / Márcia Foletto
RIO — Morto com um tiro à queima-roupa, atestado pelo laudo do Instituto Médico-Legal, Marcelo da Fonseca, então com 29 anos, teria trocado tiros com a polícia em uma operação na Cidade de Deus, no Rio. Teve, então, sua morte registrada como auto de resistência. No Brasil, casos como este, em que homens e mulheres são supostamente mortos em confronto com policiais, vitimam, diariamente, cinco civis. O dado faz parte de um levantamento inédito do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, obtido com exclusividade pelo GLOBO e que fará parte do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2013. Segundo a pesquisa, com respostas de 23 estados, 1.890 pessoas morreram em 2012. No mesmo período, 89 policiais civis e militares foram mortos em serviço em todo o país. A relação foi de 21 civis para cada policial. O FBI, por exemplo, diz que é aceitável, no máximo, a relação de 12 civis mortos para cada policial morto. Organizações internacionais falam em dez civis. As mortes em confronto com a polícia no país serão tema de uma série de reportagens que O GLOBO começa a publicar hoje.
— O número é inaceitável. Nos Estados Unidos, que têm população 60% maior que a do Brasil, em 2012, 410 pessoas foram mortas em confronto com a polícia. No México, que tem taxa de homicídio bastante próxima à do Brasil e vive uma guerra civil, a polícia mata menos — diz Samira Bueno, secretária executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. — O número de mortes deveria ser zero ou perto de zero. Todos os países democráticos têm polícia forte. Mas ter polícia forte significa seguir padrão operacional e protocolos e ter mecanismos de controle para garanti-los. Quando o policial não cumpre o protocolo, ele também é vítima, ele também morre. Sabemos que existem casos em que o policial corre risco ou tem que proteger a vida de outro cidadão e atira. O fórum não se coloca contra a polícia. O que questionamos é se todas as mortes precisam mesmo acontecer.
Gilmara dos Santos tem certeza de que a morte de seu filho Felipe poderia ser evitada. Em abril de 2009, o estudante havia dormido na casa dos avós e decidiu tomar café onde morava com a mãe, o padrasto e os irmãos, no Complexo da Maré. Houvera um confronto durante a noite. Por volta das 10h50m, ele chegou à casa, viu que a mãe não estava e ficou conversando com vizinhos, já que não havia levado a chave.
— Eu fui buscar meus filhos na escola, saí um pouco mais cedo nesse dia. Quando voltei, contaram que duas pessoas passaram correndo por onde ele estava, ele se virou para ver o que era, e a polícia atirou. Daí, colocaram uma arma perto dele, o pegaram, jogaram na viatura e levaram para o hospital. Ele morreu, e ficaram dizendo que era bandido, que havia tido troca de tiro, que ele estava numa moto — lembra Gilmara, que abriu um processo contra o estado: — Contra os PMs, jamais. Tenho meus filhos, meu neto, não quero nada que os prejudique. As testemunhas tinham muito medo, e eu tenho também. Fiquei doente, é muito difícil. Jamais esqueço meu filho, que teria agora 22 anos.
SP, Rio e Bahia: 1.322 casos no ano passado
De acordo com os dados, em números absolutos, São Paulo, Rio e Bahia são os estados onde mais casos de resistência seguida de morte aconteceram. Somados, foram responsáveis por 1.322 mortes. Em SP, ano passado, 563 pessoas foram mortas.
— Há uma pluralidade de fatores para explicar estes números. A polícia é tradicionalmente violenta, existe uma cultura de violência, e os controles são inexistentes. Mas a cultura violenta não explica tudo. Em São Paulo, por exemplo, a mera mudança do secretário de Segurança fez cair em 64% o número de mortes em confronto entre janeiro e maio deste ano em relação ao mesmo período de 2012. No Rio, caiu de 1.330, em 2007, para 415 casos no ano passado. Se as polícias começarem a se perguntar que policial querem ter, que treinamento deve ser oferecido, se houver supervisão, controle e punição administrativa e do Judiciário, a tendência é que os números caiam mais — diz Theodomiro Dias, advogado, jurista e professor da FGV.
Considerando apenas os nove estados para os quais é possível fazer a comparação entre 2007 e 2012, o número de autos de resistência caiu de 1.834 para 1.165.
Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella Vieira reconhece que ter aprimorado e revisto os procedimentos operacionais, dando ênfase às abordagens e também condições para que os lugares de confrontos fossem preservados, foi medida fundamental para que os índices caíssem:
— Mudamos também a nomenclatura. Chamar de auto de resistência ou de homicídio já é um pré-julgamento. Adotamos morte em decorrência de intervenção policial. Daí, se não foi legítima defesa, é homicídio. Saber exatamente o que aconteceu é fundamental, porque algumas ações de confronto são legítimas, e outras, não.
Na Bahia, segundo Luiz Cláudio Lourenço, pesquisador do Laboratório sobre Crime e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, do 1º semestre de 2007 ao 1º semestre de 2012, foram registradas 1.639 mortes em confronto com a polícia no estado, “um número considerável”, afirma. Por lá, diferentemente de outras regiões onde este tipo de confronto é predominantemente com a PM, a letalidade da Polícia Civil é um terço daquela da PM.
De acordo com o pesquisador, o quadro no estado começou a se agravar nos anos 2000, chegando a uma crise em 2009, quando, após transferência de líderes de facções, houve uma onda de violência semelhante à de 2006 em São Paulo:
— A última década foram os anos em que mais se prendeu por tráfico de drogas no estado. Com este aumento da população nos presídios, para organizar a vida lá, formaram-se as facções. Elas passaram a disputar poder, o que contribui para uma dinâmica mais violenta, de mais confronto.
Mortes invisíveis
De janeiro de 2012 a setembro de 2013, segundo o Ministério Público da Bahia, foram abertos no estado 208 inquéritos que tratam de resistência à prisão, sendo a maioria de resistência a policiais.
— Você não pode deixar a morte de uma pessoa ser esclarecida por um auto, porque o auto é a versão unilateral de uma parte qualificada, que sabe corromper provas. Após um confronto com a polícia, geralmente num bairro humilde, de noite ou de madrugada, ninguém mais passa naquele local, o policial é o dono da situação. No auto, você declara a legítima defesa do policial antes de declarar que houve um homicídio. O que é valorado não é o fato mais grave, a morte, mas a conduta do morto. Muitas vezes, a delegacia nos manda um inquérito para apurar a resistência; mandamos refazer, para que seja feito um inquérito de homicídio. Se não temos pena de morte na Constituição, não podemos ter pena de morte nas ruas — afirma o promotor José Emmanuel Lemos, coordenador do Grupo de Controle Externo da Atividade Policial do MP da Bahia.
Consultora do Banco Mundial e pesquisadora da área de segurança pública, Adriana Loche diz que a dificuldade de controle da letalidade policial no Brasil é em grande medida explicada pela autonomia que as polícias militares têm, “em parte porque são militarizadas, em parte porque há o espírito de corpo da instituição”:
— Por serem militarizadas, as PMs pensam: como um civil, que no caso é o secretário de Segurança, vai comandar militares? Isso faz a instituição se fechar. E, no caso das investigações das corregedorias da PM, o problema é que elas vão punir o que acham que seja uma violação; e, na sua visão, um policial matar em confronto não é considerado violação, é visto como alguém se defendendo.
Pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, Ignacio Cano lembra que muitas vezes estas mortes são invisíveis.
— Qualquer morte tem que ser investigada, mesmo que não haja indício de nada ilícito. O Brasil não pode matar sem defesa, sem julgamento. A lei tem que ser respeitada. No entanto, policiais não são presos em flagrante, as provas técnicas às vezes são inexistentes, as testemunhas têm medo... Então, o promotor pede arquivamento, e o juiz arquiva. Quando vai para julgamento, o morto tem o caráter moral julgado. A presunção é sempre a da culpabilidade — diz Cano, lembrando que a violência atinge também policiais. — O ciclo de vingança se perpetua.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Dentro de um futuro Sistema de Justiça Criminal, eu defendo a inclusão da figura do promotor corregedor que passa a atuar dentro da organização policial, junto aos assuntos interno, de onde pode acompanhar "in loco", observar e analisar os procedimentos e tomar as providências cabíveis diante das ilicitudes levando os autores à justiça. Assim evitaria o desconhecimento, a burocracia e a impunidade.
Atualizado:3/11/13 - 10h13
Gilmara tatuou o nome do filho depois que o rapaz morreu na porta de casa O Globo / Márcia Foletto
RIO — Morto com um tiro à queima-roupa, atestado pelo laudo do Instituto Médico-Legal, Marcelo da Fonseca, então com 29 anos, teria trocado tiros com a polícia em uma operação na Cidade de Deus, no Rio. Teve, então, sua morte registrada como auto de resistência. No Brasil, casos como este, em que homens e mulheres são supostamente mortos em confronto com policiais, vitimam, diariamente, cinco civis. O dado faz parte de um levantamento inédito do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, obtido com exclusividade pelo GLOBO e que fará parte do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2013. Segundo a pesquisa, com respostas de 23 estados, 1.890 pessoas morreram em 2012. No mesmo período, 89 policiais civis e militares foram mortos em serviço em todo o país. A relação foi de 21 civis para cada policial. O FBI, por exemplo, diz que é aceitável, no máximo, a relação de 12 civis mortos para cada policial morto. Organizações internacionais falam em dez civis. As mortes em confronto com a polícia no país serão tema de uma série de reportagens que O GLOBO começa a publicar hoje.
— O número é inaceitável. Nos Estados Unidos, que têm população 60% maior que a do Brasil, em 2012, 410 pessoas foram mortas em confronto com a polícia. No México, que tem taxa de homicídio bastante próxima à do Brasil e vive uma guerra civil, a polícia mata menos — diz Samira Bueno, secretária executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. — O número de mortes deveria ser zero ou perto de zero. Todos os países democráticos têm polícia forte. Mas ter polícia forte significa seguir padrão operacional e protocolos e ter mecanismos de controle para garanti-los. Quando o policial não cumpre o protocolo, ele também é vítima, ele também morre. Sabemos que existem casos em que o policial corre risco ou tem que proteger a vida de outro cidadão e atira. O fórum não se coloca contra a polícia. O que questionamos é se todas as mortes precisam mesmo acontecer.
Gilmara dos Santos tem certeza de que a morte de seu filho Felipe poderia ser evitada. Em abril de 2009, o estudante havia dormido na casa dos avós e decidiu tomar café onde morava com a mãe, o padrasto e os irmãos, no Complexo da Maré. Houvera um confronto durante a noite. Por volta das 10h50m, ele chegou à casa, viu que a mãe não estava e ficou conversando com vizinhos, já que não havia levado a chave.
— Eu fui buscar meus filhos na escola, saí um pouco mais cedo nesse dia. Quando voltei, contaram que duas pessoas passaram correndo por onde ele estava, ele se virou para ver o que era, e a polícia atirou. Daí, colocaram uma arma perto dele, o pegaram, jogaram na viatura e levaram para o hospital. Ele morreu, e ficaram dizendo que era bandido, que havia tido troca de tiro, que ele estava numa moto — lembra Gilmara, que abriu um processo contra o estado: — Contra os PMs, jamais. Tenho meus filhos, meu neto, não quero nada que os prejudique. As testemunhas tinham muito medo, e eu tenho também. Fiquei doente, é muito difícil. Jamais esqueço meu filho, que teria agora 22 anos.
SP, Rio e Bahia: 1.322 casos no ano passado
De acordo com os dados, em números absolutos, São Paulo, Rio e Bahia são os estados onde mais casos de resistência seguida de morte aconteceram. Somados, foram responsáveis por 1.322 mortes. Em SP, ano passado, 563 pessoas foram mortas.
— Há uma pluralidade de fatores para explicar estes números. A polícia é tradicionalmente violenta, existe uma cultura de violência, e os controles são inexistentes. Mas a cultura violenta não explica tudo. Em São Paulo, por exemplo, a mera mudança do secretário de Segurança fez cair em 64% o número de mortes em confronto entre janeiro e maio deste ano em relação ao mesmo período de 2012. No Rio, caiu de 1.330, em 2007, para 415 casos no ano passado. Se as polícias começarem a se perguntar que policial querem ter, que treinamento deve ser oferecido, se houver supervisão, controle e punição administrativa e do Judiciário, a tendência é que os números caiam mais — diz Theodomiro Dias, advogado, jurista e professor da FGV.
Considerando apenas os nove estados para os quais é possível fazer a comparação entre 2007 e 2012, o número de autos de resistência caiu de 1.834 para 1.165.
Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella Vieira reconhece que ter aprimorado e revisto os procedimentos operacionais, dando ênfase às abordagens e também condições para que os lugares de confrontos fossem preservados, foi medida fundamental para que os índices caíssem:
— Mudamos também a nomenclatura. Chamar de auto de resistência ou de homicídio já é um pré-julgamento. Adotamos morte em decorrência de intervenção policial. Daí, se não foi legítima defesa, é homicídio. Saber exatamente o que aconteceu é fundamental, porque algumas ações de confronto são legítimas, e outras, não.
Na Bahia, segundo Luiz Cláudio Lourenço, pesquisador do Laboratório sobre Crime e Sociedade da Universidade Federal da Bahia, do 1º semestre de 2007 ao 1º semestre de 2012, foram registradas 1.639 mortes em confronto com a polícia no estado, “um número considerável”, afirma. Por lá, diferentemente de outras regiões onde este tipo de confronto é predominantemente com a PM, a letalidade da Polícia Civil é um terço daquela da PM.
De acordo com o pesquisador, o quadro no estado começou a se agravar nos anos 2000, chegando a uma crise em 2009, quando, após transferência de líderes de facções, houve uma onda de violência semelhante à de 2006 em São Paulo:
— A última década foram os anos em que mais se prendeu por tráfico de drogas no estado. Com este aumento da população nos presídios, para organizar a vida lá, formaram-se as facções. Elas passaram a disputar poder, o que contribui para uma dinâmica mais violenta, de mais confronto.
Mortes invisíveis
De janeiro de 2012 a setembro de 2013, segundo o Ministério Público da Bahia, foram abertos no estado 208 inquéritos que tratam de resistência à prisão, sendo a maioria de resistência a policiais.
— Você não pode deixar a morte de uma pessoa ser esclarecida por um auto, porque o auto é a versão unilateral de uma parte qualificada, que sabe corromper provas. Após um confronto com a polícia, geralmente num bairro humilde, de noite ou de madrugada, ninguém mais passa naquele local, o policial é o dono da situação. No auto, você declara a legítima defesa do policial antes de declarar que houve um homicídio. O que é valorado não é o fato mais grave, a morte, mas a conduta do morto. Muitas vezes, a delegacia nos manda um inquérito para apurar a resistência; mandamos refazer, para que seja feito um inquérito de homicídio. Se não temos pena de morte na Constituição, não podemos ter pena de morte nas ruas — afirma o promotor José Emmanuel Lemos, coordenador do Grupo de Controle Externo da Atividade Policial do MP da Bahia.
Consultora do Banco Mundial e pesquisadora da área de segurança pública, Adriana Loche diz que a dificuldade de controle da letalidade policial no Brasil é em grande medida explicada pela autonomia que as polícias militares têm, “em parte porque são militarizadas, em parte porque há o espírito de corpo da instituição”:
— Por serem militarizadas, as PMs pensam: como um civil, que no caso é o secretário de Segurança, vai comandar militares? Isso faz a instituição se fechar. E, no caso das investigações das corregedorias da PM, o problema é que elas vão punir o que acham que seja uma violação; e, na sua visão, um policial matar em confronto não é considerado violação, é visto como alguém se defendendo.
Pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, Ignacio Cano lembra que muitas vezes estas mortes são invisíveis.
— Qualquer morte tem que ser investigada, mesmo que não haja indício de nada ilícito. O Brasil não pode matar sem defesa, sem julgamento. A lei tem que ser respeitada. No entanto, policiais não são presos em flagrante, as provas técnicas às vezes são inexistentes, as testemunhas têm medo... Então, o promotor pede arquivamento, e o juiz arquiva. Quando vai para julgamento, o morto tem o caráter moral julgado. A presunção é sempre a da culpabilidade — diz Cano, lembrando que a violência atinge também policiais. — O ciclo de vingança se perpetua.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Dentro de um futuro Sistema de Justiça Criminal, eu defendo a inclusão da figura do promotor corregedor que passa a atuar dentro da organização policial, junto aos assuntos interno, de onde pode acompanhar "in loco", observar e analisar os procedimentos e tomar as providências cabíveis diante das ilicitudes levando os autores à justiça. Assim evitaria o desconhecimento, a burocracia e a impunidade.
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