domingo, 24 de novembro de 2013

DE DALLAS A SANTA MARIA

ZERO HORA 24 de novembro de 2013 | N° 17624

ARTIGOS

Flávio Tavares*



Qualquer crime contra a vida e a dignidade humana é perverso, mas pode até ter explicação racional

O assassinato de John Kennedy completa meio século, sem que se saiba quem o matou e a mando de quem ou do quê. A grande conspiração que, com dois tiros disparados a mais de 30 metros, estourou os miolos do presidente dos Estados Unidos a 22 de novembro de 1963, em Dallas, não é apenas um complicado caso policial que passe à História como insolúvel, se dissolva nos anos e no esquecimento. Matar o presidente da maior potência militar, econômica e financeira do planeta em seu automóvel em plena rua e, passados 50 anos, não desvendar o crime (nem saber explicá-lo) é ainda mais vergonhoso e absurdo do que o próprio crime.

Sim, pois o encobrimento é mais ultrajante do que o delito em si. Qualquer crime contra a vida e a dignidade humana – a começar pela tortura – é perverso na essência, mas pode até ter explicação racional. Encobri-lo, porém, é perversão abjeta e irracional, pois cometido pela própria Justiça. É um crime dentro do crime. Só a mesquinhez do interesse subalterno (chame-se corrupção, desídia, peculato, suborno, alienação, ânsia de lucro ou o que for) pode explicá-lo.

No assassínio de Kennedy, “razões de Estado” levaram a encobrir o crime – até hoje, a nódoa profunda e vergonhosa da democracia norte-americana. Lá, desbarataram até a odiosa discriminação racial que, em Mississipi e no Texas, ainda nos anos 1960 enforcava negros na rua. Hoje, Obama – um negro – governa os EUA e o opróbrio foi vencido. Mas falta apontar os concretos assassinos de Dallas.

Seria penetrar no amargo âmago do poder, investigar (e acusar) a CIA e os serviços secretos. E, com isto, fazer estremecer o próprio poder, derrubando políticos, empresários, mafiosos notórios ou aparentes virtuosos. E, até, astros de Hollywood, do boxe e do beisebol.

Mas, e aqui, que não temos Óliúdi nem boxe ou beisebol?

A cada grande crime novo, evapora-se o anterior. Aqui tudo é Copa do Mundo e futebol e nem isto está a descoberto. No resto, o encobrimento manda e desmanda. Um mês atrás, no Ministério do Trabalho, em Brasília, estourou um escândalo envolvendo íntimos assessores do ministro em desvios de R$ 400 milhões. (Repito a cifra descomunal por extenso – quatrocentos milhões – para não haver dúvida). Preso em seu gabinete, o principal acusado saiu algemado do ministério, mas (liberado depois) volta lá todos os dias, mesmo demitido.

Lembram-se da reação do ministro Manuel Dias, do PDT? Ameaçou “revelar coisas impublicáveis” se perdesse o cargo e não se falou mais nisso. Logo após, a Procuradoria da República de novo “perdeu o prazo” para responder a um tribunal estrangeiro sobre as multimilionárias somas depositadas pelo chefão do PP, Paulo Maluf, em bancos europeus, notoriamente oriundas de fraudes. Com isto, prescreve o processo iniciado lá fora.

A lista dos grandes encobrimentos ocuparia páginas do jornal. Por isto, limito-me ao mais trágico dos acontecimentos e que (mesmo bem próximo) se encaminha para a mais infamante impunidade – a matança de janeiro na boate de Santa Maria.

O minucioso inquérito policial e a amplitude da carnificina de 242 pessoas não foram suficientes para sensibilizar os promotores de Justiça por lá. Foi preciso reabrir agora a investigação, quase recomeçar tudo de novo, para evitar que se encubra o crime abjeto. E para que Santa Maria não seja a Dallas brasileira.

P. S. – Além do sorriso, o mais bonito na libertação de Ana Paula Maciel foi o cartaz que empunhou ao sair da prisão, na Rússia: “Salve o Ártico”. Mais do que salvar-se a si mesma, ela opta por salvar a vida no planeta.


*JORNALISTA E ESCRITOR

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